sábado, 9 de novembro de 2024

II SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA E PERIFÉRICA – SOBRE O “NÓS” E O SER”, NA BAIXADA FLUMINENSE




Texto de Ivan Machado*

O ano é 2023, quando surge no cenário televisivo o jovem cantar MC Cabelinho, que desde 2016 vem crescendo na cena musical carioca, tendo o RAP, o TRAP e o Funk como linguagem, que o colocou no topo das plataformas digitais de música. É ele quem viraliza o termo “A favela venceu”, com uma faixa musical na qual exalta seu sucesso, enquanto critica quem não acreditava em seu esforço.

Olha aí a favela no auge Te falei que esse sufoco um dia acabaria Nós driblou toda essa falta de oportunidade Conseguimo e 'to vivendo da minha correria, quem diria?

Ocorre que esse jovem de origem favelada, que conseguiu furar o forte bloqueio da mídia hegemônica, alterna o “nois” e o “eu” como agente do sucesso, sempre se referindo à própria trajetória, sem citar um parceiro ou coletivo se quer. Qual é então a devolutiva desse sucesso para a favela e o quanto seu discurso incentiva a ação coletiva e a criação de espaços de fomento ao protagonismo? Quais valores culturais da favela são exaltados ou qual é a cara da favela que se reflete enquanto território, a partir da obra desse artista? Nesse caso, poderíamos entender que ele representa a trajetória de sucesso da favela como um todo ou mais um exemplo de talento individual emergente, a quem foi permitido brilhar?

Quando optamos em 2023 por apresentar uma nova perspectiva para a ideia de consciência Negra, a partir de um olhar mais atento sobre o povo preto da Baixada Fluminense, pensamos em levantar ponderações quanto aos desafios de quem “é”, a partir do “nós” de cada pessoa negra e periférica em seu contexto.  Levamos também em conta que as celebrações do 20 de novembro ocorrem majoritariamente nos locais de grande visibilidade midiática e circulação pública, na Cidade do Rio de Janeiro. O contraditório se dá em relação ao fato de que as grandes manifestações nessa data ocorrem onde a maioria da militância negra Fluminense não firma residência ou partilha seus afetos, em detrimento da efervescência cultural de nossa negritude regional, em territórios descentralizados.

São raros os casos de descendentes de famílias negras que já nascem em condições financeiras abastadas, construindo vínculos sociais e moradia, em áreas nobres das metrópoles. A forte relação de nossos jovens com territórios onde se estabeleceram nossos mais velhos e muito significativa, mesmo diante de eventual ascensão social ou financeira. Nossa juventude negra ainda mantém fortes laços afetivos com seu lugar de origem. Muitos desses, por conta da especulação imobiliária da Capital e a oportunidade de se estabelecer em terreno próprio da família, o que justifica a contradição entre ser periférico e buscar melhoria no poder de consumo.

Nossa negritude e a Baixada Fluminense

A pesquisadora Lucia Helena da Silva, escreve em seu artigo “Hildebrando de Goes e sua leitura sobre História da Baixada Fluminense” (2019), que a primeira publicação que dá conta de teorizar sobre a Baixada Fluminense enquanto região foi o relatório da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, publicado em 1939, por Hildebrando do Goes.  Segundo ela, o

“Termo inicialmente vindo da geografia, mudou o seu sentido ao longo do tempo e nas últimas cinco décadas remete a uma imagem que está intimamente ligada à pobreza, ao abandono dos poderes públicos, à ausência de estrutura urbana e à violência”.

No documento, o engenheiro descreve aspectos que vão além da análise topográfica para fins de obras públicas. Goes se debruça sobre questões relacionadas aos fatores que históricos que transformaram a região em um território insalubre, mesmo após o período de avanços na economia, que se dava em acordo com as condições naturais da região, como a navegabilidade dos “flumens”, rios navegáveis como Pilar, Meriti, Iguassú, Sarapuí e Estrela, amplamente utilizados para escoar a produção agrícola até a Baia de Guanabara. O principal elemento motivador do declínio desse modelo de ocupação urbana e desenvolvimento econômico foi a construção da malha ferroviária que, a partir de 1854, com a inauguração da estação Magé, criando um novo caminho de acesso e o gradativo abandono das antigas terras e o assoreamento dos rios, devido o também gradual abandono das hidrovias. O resultado foi o alagamento das páreas abandonadas, dando lugar Malária, doença que afastava qualquer possibilidade de ocupação permanente do território. Soma-se a isso uma série de atrativos como Segurança Pública crescimento do comércio, por exemplo, que incentiva ainda hoje a vinda de novos habitantes.

A Baixada Fluminense, com seus quase 4 milhões de habitantes e mais de 2.4 milhões de pessoas que se declaram negra, segundo o IBGE (2022), tem boa parte de seus municípios com IDH acima da média nacional. Considerando a grande massa da população dessa região, os dados oficiais mostram que há na Baixada Fluminense uma grande concentração de riqueza, advinda de indústrias e um comércio bastante dinâmicos, exatamente por conta do adensamento populacional e seu público consumidor, além do acesso rápido à Rodovia Presidente Dutra, por onde circulam produtos, matéria prime e a grande massa de trabalhadores. Muitos empreendedores, servidores públicos e militares, entendem que é menos dispendioso habitar esse imenso território, que está a menos de uma hora de carro, do Centro do Rio e da Zona Sul, em condições favoráveis de trânsito e clima, fatores que o mercado imobiliário conhece e explora. Devemos considerar também que nossa região abriga um número expressivo de negros e negras, cuja produção intelectual contribui significativamente com a formação de humana de jovens que conseguem ter acesso à Academia. Tal fenômeno contribui significativamente para a elevação da autoestima dos jovens estudantes, ao passo que se torna notória a importância de universidades públicas na região, bem como a demanda pela edificação de mais espaços de formação superior. O que percebemos como resultante da formação e consequente produção intelectual de professores e alunos negros na região é exatamente a elevação do nível de consciência, a partir de um recorte geográfico, cujo território remonta nossa histórica busca por um lugar no qual nos seja possível construir identidade, pertencimento e elevação no nível de questionamento sobre a própria realidade sociocultural.

A “Mãe da Baixada” e a emancipação de seus filhos

A pesquisadora Lucia Helena da Silva, escreve em seu artigo “Hildebrando de Goes e sua leitura sobre História da Baixada Fluminense” (2019), que a primeira publicação que dá conta de teorizar sobre a Baixada Fluminense enquanto região foi o relatório da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, publicado em 1939, por Hildebrando do Goes.  Segundo ela, o

“Termo inicialmente vindo da geografia, mudou o seu sentido ao longo do tempo e nas últimas cinco décadas remete a uma imagem que está intimamente ligada à pobreza, ao abandono dos poderes públicos, à ausência de estrutura urbana e à violência”.

No documento, o engenheiro descreve aspectos que vão além da análise topográfica para fins de obras públicas. Goes se debruça sobre questões relacionadas aos fatores que históricos que transformaram a região em um território insalubre, mesmo após o período de avanços na economia, que se dava em acordo com as condições naturais da região, como a navegabilidade dos “flumens”, rios navegáveis como Pilar, Meriti, Iguassú, Sarapuí e  estrela, amplamente utilizados para escoar a produção agrícola até a Baia de Guanabara. O principal elemento motivador do declínio desse modelo de ocupação urbana e desenvolvimento econômico foi a construção da malha ferroviária que, a partir de 1854, com a inauguração da estação Magé, criando um novo caminho de acesso e o gradativo abandono das antigas terras e o assoreamento dos rios, devido o também gradual abandono das hidrovias. O resultado foi o alagamento das páreas abandonadas, dando lugar Malária, doença que afastava qualquer possibilidade de ocupação permanente do território. Soma-se a isso uma série de atrativos como Segurança Pública crescimento do comércio, por exemplo, que incentiva ainda hoje a vinda de novos habitantes.

Desde os anos 40 até o final do Século XX, Nova Iguaçu, apelidada de “mãe da Baixada Fluminense”, viveu uma série de emancipações político administrativas, por parte de alguns de seus importantes distritos, sob a justificativa de alavancar o progresso de alguns territórios. A justificativa comum entre os emancipacionistas desses municípios era a possibilidade de resolver questões locais com mais agilidade, a partir do entendimento dos novos munícipes, quanto a ideia de progresso. Ocorre que o período citado também coincidiu com a explosão da migração interna para a região, além da vinda de imigrantes europeus que para cá vieram, já na virada do Século XX, chegada essa que se intensifica no período entre I e II guerras. Esses últimos se estabeleceram na região, abrindo pequenos negócios ou investindo na lavoura, gerando renda familiar a partir do consumo precário dos primeiros migrantes brasileiros e na exportação de laranja. Já nos anos 50 e 60 o número de nordestinos expulsos de sua região pela seca extrema, produz um crescimento demográfico em uma proporção nunca antes vista. Todavia, a baixa escolaridade da grande maioria desses novos baixadenses não possibilitava acesso às poucas vagas de emprego qualificados nas grandes indústrias aqui existentes, como a Bayer em Belford Roxo, inaugurada em 1958, a refinaria da PETROBRAS em Duque de Caxias em 1961 ou a BRASFERRO em Mesquita, inaugurada em 1966 e encerrada em 2008. A baixa oferta de serviços públicas e privados, aliada à pouca oferta de emprego e o baixo custo das passagens dos trens à época, apresentavam a Capital como única oportunidade de geração de renda para a grande maioria da população economicamente ativa. Essa massa de trabalhadores e trabalhadoras perdia longas e cansativas horas entre idas e vidas, além das pesadas jornadas de trabalho que lhes era imposta, fazendo com que seu tempo em casa se resumisse a poucas horas diárias durante a semana, impondo aos municípios da região o estigma de “Cidades dormitório”.

A virada do Século XXI desenha uma nova face da Baixada Fluminense, tendo o desenvolvimento econômico como chave de virada. Pelo menos uma dezena de shopping centers da REGIÃO nos fazem pensar no poder de consumo dos habitantes dessa região. São verdadeiros centros de entretenimento que contam com centenas de consumidores e visitantes diariamente, demonstrando que as classes C e D também querem exercer o direito usufruir dos bens de capital que lhes salta aos olhos todos os dias nas telas à sua frente. A chamada constituição Cidadã, que entra em vigor em 1988 também exerceu grande influência no poder de compra de trabalhadoras e trabalhadores na região, por conta do princípio administrativo da descentralização da gestão pública. Com um dispositivo legal que garante repasses Fundo a Fundo, as prefeituras vislumbram um horizonte antes impossível, tendo então os percentuais do Fundo de Participação dos Municípios e os repasses impositivos para Educação, Saúde e Assistência, garantindo um arcabouço financeiro à gestão local, capaz de fazer das prefeituras a principal fonte de emprego e renda da maioria das cidades fluminenses. Agora, muitos filhos e netos daqueles que antes, para cá vieram, sem perspectiva de efetivo progresso, agora incentiva seus mais novos a buscar algum nível de formação, de modo a ocupar seu quinhão ao lado de alguma figura pública que o apadrinhe, em suas cidades.

A Baixada Fluminense conta hoje com 8 campus de universidades públicas, nos quais, muitos docentes são oriundos da própria região, o que eleva o nível de empatia dos alunos, elevando também o nível de aproveitamento acadêmico e o número de concluintes. Assim, o fato de existir um acesso à universidade pública na mesma região onde nossos pais e antepassados construíram suas histórias de vida, é algo que pode contribuir para a elevação da autoestima de quem aqui vive e busca acesso a uma formação intelectual de qualidade.

O CCPBF adota a ideia de que consciência negra é algo que deve sim ser encarado de forma coletiva, mas também com recorte geográfico, sobretudo se considerarmos a peculiaridade de cada um dos 13 municípios da Baixada Fluminense, cada um com seus avanços e desafios. Ser negra ou negro periférico exige um nível a mais de consciência. Portanto, ser gente preta da Baixada é também fazer parte de uma realidade na qual podemos e devemos interferir de forma coletiva e sistemática, de tal modo que nossa identidade reflita a realidade do território, superando assim o estigma que nos é imposto, como um tipo de vício de origem, que impõe um muro diante de nossos esforços, talentos e capacidades. Se os lugares de privilégio historicamente são ocupados por homens brancos, ricos e mais velhos, há que se pensar na necessidade de elevação de nosso potencial técnico e intelectual, a fim de efetivamente entrarmos na disputa por espaços de protagonismo além daqueles, tradicionalmente atribuídos à malemolência. 

O Mercado já compreende a importância da negritude periférica no que se refere à seu potencial econômico, daí a diversidade de produtos midiaticamente direcionados a esse perfil de consumidor. Isso se dá não pela benesse ou espírito de equidade do capitalismo, mas pela visão estratégica sobre os hábitos de consumo da população negra Fluminense, que tem acesso às diversas inovações possíveis de adquirir, muitas vezes a pouca distância de seu lugar de moradia. Se entendemos que o consumo é direito nosso ou temos a renda necessário para tal, não abrimos mão de acessar esse ou aquele produto que nos garanta algum nível de bem-estar. No entanto, ainda que muitos empreendedores e infuencers se aventurem na política com o discurso de arejar e dar eficiência à coisa pública, não notamos a utilização da mesma metodologia de facilitação de acesso a direitos, mas apenas a tentativa de deturpação da ideia de estado, através de gestores que buscam estabelecer um modelo ainda mais perverso e personalista de Estado mínimo. Uma possível é fazer valer, a partir de uma mobilização coletiva, o princípio constitucional da equidade, cobrando eficiência e horizontalização de ações de estado, de forma consciente por nossa parte. É cobrar que o aparato estatal cumpra seu papel aqui, onde vivemos, de modo que não seja necessário disputar o lugar de privilégio de quem sempre o ocupou e estabeleceu que ali não é nosso lugar. Essa é então a relevância de uma visão clara de que consciência negra se faz, se vive e se estabelece principalmente aqui, no nosso lugar.

Semana da Cosciência Negra e Periférica - programação 2024

Nesse ano o CCPBF opta por uma proramação que priorize a importância da escola como espaço cultural nato. Espaço esse, capaz de questionar e debater a sociedade e oterritório, a partir de uma perspectiva antirracista, a patir da comunidade escolar.  

Veja abaixo a programação e também no perfil do Instagram mais detalhes.

18/11

- palestra Sandra Souza, Marize Justino e Andressa - Disscussão sobre racismo estrutural, letramento racial e educação  antirracista, sob o olhar da mulher preta - 18:30h - público em geral

- lançamento de livro "Todo Preto, de Ele Semog -20h - público em geral Local: sede do CCPBF

18 a 20/11

- Expo Os novos da Folia - a importância da juventude  como garantia do presente e do futuro das expressões culturais afrocentradas - exposição permanente 

Local: sede do CCPBF - público em geral

- Ivan Machado e o projeto Percussa na Escola - oficina de percussão em dois promeiros turnos letivos 
Local: CIEP 111 - Alunos do Ensino Fundamental

19/11

- Macedo Griot e seus Contos africanos 
Local: CIEP 111 - 19/11 - turma de EJA Ensino Médio - noite

20/11

- Exibição de Curta - Mestre Nego: Boas Novas de Belém e a Cultura Popular - 19h

- Roda de Samba - Samba de Cadeira: "é sentar e ouvir o qie conta e o que canta o compositor da Baixada Fluminense " 20h
Local: sede do CCPBF - público  em geral

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* Ivan Machado é professor de História, mestre em Educação, especialista em Arte-Educação e presidente do Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense