sexta-feira, 29 de março de 2024

A Lei dos Mestres e os desafios da Cultura Popular e Tradicional no Estado do Rio de Janeiro



Festa de Arremate da Folia de Reis Sempre Viva do Oriente-Mestre Claudio
Texdo de: 
Ivan Machado 
Mestre Paulão Kikongo
 e Thereza Dantas

 Em nossos dias, quando se pensa na salvaguarda de expressões culturais que nos identificam enquanto povo brasileiro e em um país de dimensões continentais como o nosso, há que se pensar também no longo caminho trilhado por indivíduos e entidades que, ao longo do tempo, vem buscando humanizar aquilo que anteriormente chamávamos de folclore. Uma prioridade nesse contexto de humanização do olhar sobre expressões de nossas tradições populares, é evitar o descolamento entre ensinamentos, técnicas, crenças, expressões estéticas e as pessoas que detém tais conhecimentos. Com isso se justifica um levantamento inicial, realizado pelo Centro de Cultura Popular da Baixada fluminense, em parceria com a Rede das Cultura populares e Tradicionais e o Fórum das Culturas Populares e Tradicionais, que dá conta de levantar uma prévia de quantos são, onde estão e há quanto tempo atuam mestras e mestres de nossa popular e tradicional fluminense. Nesse levantamento, esses coletivos tomam como referência marcos legais que tramitam no Legislativo, tanto na esfera estadual quanto federal.



Mestras e Mestres do Rio de Janeiro

Na cidade maravilhosa, o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e Mestras do Patrimônio Cultural Imaterial das culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, caiçaras e de outras comunidades e grupos tradicionais, o Projeto de Lei Nº 1829/2023, proposto pelo vereador Edson Santos (PT), o mesmo político responsável pelo PL das Mestras e Mestres das Culturas Populares no Congresso Nacional, e as vereadoras do PSOL Mônica Benício, Mônica Cunha e Luciana Boiteux, foi vetado na íntegra pelo atual prefeito Eduardo Paes, o mesmo que frequenta as rodas de samba com alegria e amplamente divulgado nas redes sociais da Prefeitura do Rio de Janeiro.

 

Link do PL

 Há falta de entendimento da importância desses mestres e mestras na vida dos brasileiros, vetar integralmente o PL para Mestres e Mestras da cidade do Rio de Janeiro demonstra um desrespeito para com quem faz as Rodas de Samba, os Jongos, as Folias de Reis, as Rodas de Capoeira, a Moda e as Festas das Culturas Populares e Tradicionais.

 Na resposta ao PL Nº 1829/2023 que instituía o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e do Patrimônio Cultural Imaterial das culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, caiçaras e de outras comunidades e grupos tradicionais publicada em DO 29 de Novembro de 2023, a justificativa de que essa “é uma atribuição do Prefeito”, no caso o sr. Eduardo Paes, que frequenta rodas de samba e diz amar o Carnaval, essa festa tão popular!

 

A Lei dos Mestres e um levantamento que a justifique -Link do Veto

Conforme foi dito de início, uma parceria firmada entre o CCPBF e os dois fóruns que acompanham os marcos legais referentes às culturas populares, está dialogando com alguns mestre e mestras, no sentido de ponderar junto a esse, a relevância de uma lei que os contemple. No levantamento feito entre os dias 10 e 22 de março, tiveram retorno de 37 mestres de folias de Reis, 13 mestres de capoeira, 03 mestras cirandeiras, 03 erveiras, um mestre griot e um brincante de Caxambu, todos e todas com idade acima de 50 anos e com mais de 20 anos de prática em seus respectivos segmentos. Esse levantamento seguiu os critérios básicos das três propostas legais citadas, deixando claro o interesse desse segmento na efetiva execução da Lei dos Mestres de Cultura Popular no âmbito do estado do Rio de Janeiro.

 Desde 2020, quando a pandemia da Covid-19 colocou em risco milhões de idosos no Brasil, além de ceifar a vida de milhares nessa faixa etária, percebemos o quão frágil é a condição de vida de mestres e mestras que, quase em sua totalidade, vivem em condições precárias de subsistência. Muitos entre esses têm limitado acesso a informações que lhes garantam qualidade de vida, bem como ao que se refere a inclusão digital desses, o que impacta significativamente no acesso dos mesmos a editais públicos. Estamos cientes que ideia de Economia da Cultura é uma realidade que eleva o potencial de geração de renda no PIB nacional, ampliando a relevância do setor cultura, agregando relevância aos milhares de agentes culturais. No entanto, as culturas populares e tradicionais, sobretudo aquelas que se manifestam nas comunidades menos abastadas, não disputam a economia da cultura, o que leva produtores e demais profissionais do entretenimento a não priorizarem esse segmento em suas práticas profissionais, no que se refere a captação de recurso que garantam subsistência a mestres e mestras. Em muitos casos, sobretudo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, há dificuldades inclusive quanto a viabilidade de deslocamento de grupos que se expressam através de cortejos, como é o caso de bate-boleiros e foliões de Reis. Em relação a esses últimos, temos ainda a questão da violência urbana e a baixa sensação de segurança pública, impedindo que, em muitos casos, a devoção aos Reis chegue às casas dos devotos que, por sua vez, sempre foram importante fonte de renda, a partir das “ofertas” entregues aos mestres, em gratidão pelas visitas e rezas.

 Estado que tem muitas Culturas

O Estado do Rio de Janeiro tem uma variedade de comunidades tradicionais e povos originários que surpreende quem quer conhecer para além do Carnaval. São Folias de Reis e do Divino, são Serestas, grupos de Mineiro Pau, Jongos, Rodas de Capoeira, corais Guaranis e Cirandas caiçaras preservados pelas mestras e mestres espalhados em cidades históricas centenárias como Valença, Paraty, Angra dos Reis, Vassouras, Barra do Piraí, Conservatória, Rio das Flores e Petrópolis.

 Atenta a essa diversidade cultural, a jovem deputada do PSOL, Dani Monteiro, conseguiu redigir, com o apoio de vários mestres, o projeto de lei de Salvaguarda de Mestres e Mestras da Cultura, o PL 1321-A/2023, e que, segundo a assessoria da deputada, contou com a atenção da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro, SECEC RJ.

 O PL 1321-A/2023 visava “garantir a aposentadoria de mestres e mestras que dedicaram suas vidas à cultura popular no estado do Rio de Janeiro” foi aprovado em meados de Dezembro na ALERJ e sancionado pelo atual governador do Estado do Rio de Janeiro. Apenas dois incisos, II e III do Art. 9, foram vetados:

“II - receber bolsa mensal, mediante recursos incentivados, no valor equivalente a:

a) no mínimo, 02 (dois) salários-mínimos nacionais para pessoas físicas; e

b) no mínimo, 03 (três) salários-mínimos nacionais para grupos;

 III - ter prioridade na análise de projetos culturais apresentados à Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, à Secretaria de Estado de Educação, à Secretaria de Estado de Esportes e Lazer, assim como a outros órgãos ou entidades integrantes da administração pública estadual.”  Justamente os que tratavam da questão econômica receberam tanta atenção que foram vetadas!

 A deputada Dani Monteiro pretende criar uma campanha popular em 2024 para derrubar os vetos do governador que gastou “apenas” 3 milhões de reais para decorar o camarote na Marquês de Sapucaí, no Carnaval de 2024. 

 Mestras e Mestres do Brasil

A ideia de Lei dos Mestres e Mestras da Cultura Popular e Tradicional não é uma novidade como política pública no Brasil.

 A Lei Estadual nº 12.196, de 02 de maio de 2002, instituiu a concessão do título de Patrimônio Vivo do Estado Pernambuco (RPV-PE), que prevê o pagamento de uma pensão vitalícia para os mestres e ou grupos culturais, selecionados por meio de edital público, e são lançados anualmente desde então.


A Política dos Mestres da Cultura do Ceará, Lei 13.351/2003, completou 20 anos de existência em 2023. Em 2006 foi criada a Lei dos Tesouros Vivos, uma importante política que reconhece as pessoas naturais, os grupos e as coletividades dotados de conhecimentos e técnicas de ações culturais cuja preservação e transmissão são reconhecidas e representativas da Cultura Cearense.

 No Nordeste, a visibilidade e o respeito com os mestres e mestras é presente nos estados de Sergipe, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia e Maranhão. Na região Sudeste, apesar da riqueza cultural, gestores públicos ainda não se convenceram da importância dos mestres e mestras dos Congados, Moçambiques, das Folias de Reis e do Divino, da Catira, do Samba de Bumbo Paulista, e do Samba carioca.

 Por fim, quando tomamos conhecimento da implementação Da Política Nacional Aldir Blanc-PNAB, entendemos que essa seria uma oportunidade ímpar de garantir amparo financeiro a mestras e mestres de cultura popular e tradicional, ao menos nos cinco anos de vigência dessa política. Nosso entendimento é que os erros do presente têm muito a ver com a precária compreensão de nosso passado, o que fatalmente comprometerá nossas identidades culturais, no futuro.

 

 

quarta-feira, 6 de março de 2024

1º CONCURSO DE BATE-BOLA E CLÓVIS DE MESQUITA

Uma Iniciativa do Centro Social Miro Cortez e do CCPBF 

 Uma experiência gratificante de articulação comunitária e de sensibilidade criativa em uma comunidade periférica e estigmatizada. É assim que podemos resumir o que foi o desafio de realizar um encontro dessa natureza na Chatuba de Mesquita, localidade estigmatizada pelo descaso do poder público em muitos aspectos. Foram três categorias concorrentes, sendo uma delas exclusivamente voltada a turmas formadas por mulheres, autodenominadas de Bate-boletes. Nessa categoria foi vitoriosa a turma Lunáticas da Chatuba, sendo contemplada na categoria Sombrinha e Adereço a turma Encanto da Chatuba, enquanto a turma Só Família foi a campeão na categoria Bandeira e bola. Foram trinta e uma turmas inscritas, inclusive de regiões, muitas bem distantes do local do evento, como o caso da turma as terríveis d JPA, do bairro gardênia Azul, subúrbio do Rio e As Inesperadas, de Cachoeiro de Macacu.

São diversas as formas de organização das turmas, que chegam a desembolsar até três mil reais em um figurino completo, que conta com inovações inclusive tecnológicas nos últimos anos. Os bate-bolas ou Clovis já ocupam, com mérito, um lugar no carnaval fluminense. É uma categoria que descreve como poucas o significado de cultura popular, no sentido que os bate-bolas vêm vivendo mudanças e adaptações ao longo do tempo, agregando um número cada vez maior de jovens, que tem se revelado grandes estilistas, com uma estética que lhes permite inovar, com uma liberdade que respeita os parâmetros básicos estabelecidos coletivamente, mesmo entre grupos que vivem em bairros ou regiões distantes umas das outras. Não se sabe exatamente de onde surgiu essa brincadeira, que já aparece simultaneamente em diversas comunidades da Região Metropolitana do Rio com suas características básicas, há pelo menos cinquenta anos e cuja visibilidade coincide com o fim da jornada das folias de Reis. Ou seja, mesmo sendo uma expressão estética e cultural periférica e popular, alguns fundamentos seguem na base de um movimento cultural que já carrega em sua história mis de meio século de avanços, adaptações e pesquisa empírica.

As bate-boletes são um gracioso exemplo do processo de adaptação dos Clóvis, aos novos tempos do acesso e fruição da cultura popular. Diferente do ponto de vista ortodoxo do bate-bola, predominantemente masculino, surgem as bete-boletes, que surge na última década como a vertente feminina nessa folia. Com um figurino mais leve, mais compatível com o calor carioca, elas inovam nas danças, adereços e maquiagem, assimilando os demais aspectos dos brincantes masculinos, como o uso das barulhentas bolas batinas fortemente no chão, as sombrinhas e as coreografias marcadas. Segundo levantamento do Observatório de favelas, as turmas  de bate-boletes vem crescendo, já passando da meta do número de turmas masculinas nos últimos cinco anos, proporção que aumenta a cada ano, se considerarmos as turmas femininas que vem tomando espaço na Baixada fluminense e não aparecem nas estatísticas cariocas.

Bate-boletes: inovação e ocupação de espaço

É claro que os chamados Clóvis, outro nome dado aos bate-bolas, também sofre influência dos bailes de Pierrots e colombinas dos bailes chiques europeus, reproduzidos no Brasil. O uso de sombrinhas e outros adereços de mão dão cota desse imaginário que busca se aproximar da pompa das fantasias daqueles, nos quais seus imitadores não poderia de forma alguma entrar, não ao menos na condição de foliões.

Uma das inovações que denotam a disputa de narrativa em relação ao carnaval tradicional e o show pirotécnico, já estabelecido como rito de chegada, assim como ocorre entre as escolas de samba, quadrilhas juninas e folias de Reis. Tomando como exemplo o que ocorre no município de 

Mesquita, é possível identificar de onde saem as turmas de cada bairro, a partir da queima de fogos promovida por cada uma delas. O que vemos é a busca pela reprodução da grandiosidade de cada durma, que agora se reflete não apenas na indumentária, mas também no espetáculo pirotécnico, que pode tranquilamente passar dos dez minutos, durante a estrondosa chegada dos brincantes. Ainda assim, os bate-bolas aparentam ter consciência de sua histórica invisibilidade. Com exceção das bate-boletes, que já surgem em um claro contraponto à austeridade estética dos Covis, as máscaras continuam sendo um dos elementos fundamentais nas saídas das turmas.



A máscara é estratégica entre os bate-bolas
A máscara é estratégica entre os bate-bolas

O uso da máscara é sempre um aspecto peculiar às manifestações culturais que se adaptaram à realidade das populações periféricas, sobretudo aquelas que surgem ainda no período no qual a escravidão ainda é uma realidade em nosso país. O uso da máscara em festividades nos dias atuais se associa aos bailes de Veneza, onde a nobreza via interesse em participar dos grandes bailes, buscando passar incógnita diante do público. No extremo oposto desse exemplo temos jovens que pouco circulam para áreas distantes de seu lugar de acolhida. Juntamente a isso há casos de jovens que passaram pelo sistema prisional ou estão em conflito com a lei e que se sentem pouco seguros em se expor. Outro fator que se torna positivo no tocante ao grupo é o sentido de unidade que a indumentário propicia, no sentido de que, tanto a máscara quanto o conjunto do figurino, horizontaliza etnicamente os participantes. As máscaras dos Clóvis são estrategicamente elaboradas, possibilitando a ocasional exposição do rosto em intervalos, se tornando um adereço de cabeça quando não cobre o rosto, sendo facilmente recolocadas no momento da apresentação do grupo.

Conforme já foi dito, a invisibilidade dos bate-bolas é precedida do estigma, comum às manifestações artísticas populares, sobretudo aquelas, através da quais a negritude se expressa. O que vemos, a partir das turmas oriundas da Chatuba de Mesquita e que se reflete nos demais grupos é a forma como a rivalidade dos grupos não supera a necessidade de acolhimento mútuo. Cientes da condição desconfiança sobre as quais as demais turmas se manifestam, os grupos se comunicam e se articulam, socializando informações e expondo novidades desenvolvidas localmente. A evolução ocorrida a cada ano é absorvida coletivamente, o que ocorre obviamente após a apresentação de cada turma, que expõe suas inovações em redes sociais que, por sua vez, passam pelo crivo dos demais grupos de festeiros, que fazem a devida crítica, criticas essas que dão o tem do próximo ano de festejo e saídas das centenas de turmas desses foliões perféricos.  E que venha 0 2º Concurso de Bate-bolas de Mesquita, expondo as inovações e permanências dos Clóvis ou bate-bolas da região metropolitana de nosso estado fluminense.