terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

REDE CHATUBA SOLIDÁRIA E O DIREITO AOS SUS NAS FAVELAS

 


A Rede Chatuba Solidária-RECHASO é uma articulação entre entidades da sociedade civil que surge a partir da Pandemia da Covid-19, unindo ações e propostas com vistas ao enfrentamento à fome e em favor da vida, no território conhecido como Chatuba de Mesquita. Lançada pelo O Centro de Cultura Popular a Baixada Fluminense, em parceria com a Comunidade São Francisco de Assis, o Instituto Mundo Novo, A Associação dos Agricultures Rurais de Mesquita e o Centro Social Miro Cortez, a RECHASO avalia as insipientes e pouco eficazes ações governamentais no sentido de enfrentar os fatores que configuram risco à vida e à saúde na Chatuba. Fatores esses que se refletem em diversas outras comunidades periféricas fluminenses, daí nossa reflexão sobre o direito aos SUS, nas favelas.

Augusto, Patricia. Bruna. Anselmo, Toninha, Luizinho e Baia
integrantes do RECHASO

A favela é um problema histórico a quem quer ignorar os direitos universais de cada cidadão ou cidadã a vida e o SUS, no que se refere a ações no campo das políticas públicas. Desde os quilombos de resistência até o surgimento das lideranças comunitárias em meio a ditadura, inúmeras vozes vêm surgindo, denunciando a omissão da classe política e a invisibilidade imposta às comunidades periféricas no Brasil. A crise na segurança pública fluminense também adoece e precariza ainda mais os territórios periféricos, estigmatizando adultos e jovens que vivem um constante estranhamento, entre o sentido pertencimento territorial e o estigma local imposto, através de alguns veículos de mídia e a não rara truculenta ação policial. Quando observamos os diversos fatores que provocam o adoecimento da população brasileira, nos sentimos instados a reivindicar mais uma vez o papel moderador do Estado, garantindo de forma equânime o direito à saúde integral de nossa população. Nas diversas instâncias de gestão, é o princípio da descentralização e da equidade que deve promover a proteção social entre os entes federados, a partir de ações de caráter permanente, por parte do Governo Federal.

Ainda que seja a cidade o local de execução das ações de enfrentamento aos agravos que produzem o adoecimento da população, compete ao Governo Federal a responsabilidade de direcionar recursos e definir políticas que deem eficácia aos princípios que dizem respeito ao nosso Sistema Único de Saúde junto as comunidades de baixa renda, por todo país. A cidade é um corpo vivo, porem doente pela forma como se estabelecem ações de saúde nas favelas, mantendo uma didática por parte de seus governantes, que distingue econômica e culturalmente quem tem mais e quem tem menos direitos. São práticas de gestão excludentes, determinam o lugar e o papel de cada pessoa no espaço urbano. Ainda que tenhamos um conjunto de marcos legais que nos colocam entre os países mais avançados no tocante a garantia de direitos, nos vemos patinando no tocando ao “cumpra-se”, quando o público alvo é a camada social impossibilitada de acessar direitos sem as estruturas estatais. Ou seja, o direito à cultura, ao lazer e ao pleno acesso à cidade, não é financeiramente acessível ao morador de favela, em casos nos quais as estruturas de gestão estão sujeitas a especulação política. "Nossa Constituição Cidadã", por sua vez, vem sendo alvo de desconstrução desde o dia seguinte à sua promulgação, exatamente por nos garantir o pleno acesso à Saúde, valorizando a vida humana de forma horizontal. No entanto, o que vemos desde 1988 é um abismo cada vez mais profundo entre o direito a vida e a transformação da saúde em um rentável negócio. Se considerarmos que a ocupação de espaços de gestão pública notadamente vem sendo a cada ano visto como forma de geração de renda e demarcação de território, entenderemos que o direito universal à vida já está em segundo plano na estrutura estatal brasileira.

Em raros momentos surgem em nosso país iniciativas que conseguem unir classe política, gestão pública e sociedade civil, em um contraponto ao desmonte das estruturas de proteção social das camadas menos favorecidas da sociedade, bem como em alternativa a precariedade dos mecanismos de escuta. Como exemplo, as audiências públicas e os milhares de textos surgidos da sociedade civil durante a Assembleia Nacional Constituinte, contribuíram de forma inegável com a construção daquilo que chamamos de “Constituição Cidadã”. Foi um momento no qual o país saia de um longo período de silenciamento da vontade popular, com forte repressão a falas dissonantes em relação ao regime totalitário que, finalmente, devolvia a Democracia ao Brasil após forte pressão interna e externa. Quase quarenta anos depois, percebemos que surge em nossos dias mais uma lacuna para repactuação das estruturas democráticas, que podem garantir direitos aos mais pobres. É a partir de agosto de 2023 que 90 favelas do estado do Rio de Janeiro, espalhadas por 18 municípios de várias regiões, passam a atuar juntas, em busca de uma mudança de paradigma. Em parceria com importantes instituições de ensino e pesquisa, foi criado o Plano Integrado de Saúde nas Favelas, através do qual os saberes e práticas locais passam a propor mudanças na realidade local de cada comunidade na qual cada uma dessas organizações da sociedade civil está inserida. É a partir uma estreita relação com Fiocruz, UFRJ, Uerj, PucRJ, Abrasco, SBPC e a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que é possível hoje propor políticas públicas de saúde focadas na cultura da favela. No entendimento dessas lideranças locais, mesmo a descentralização de recursos, garantida pela Constituição, não será eficaz sem conhecimento ou reconhecimento do modo de vida e práticas sociais de cada comunidade, por parte das estruturas republicanas de poder.  

É o princípio da universalização do acesso à saúde que outorga ao SUS o status de maior programa de saúde do mundo, reduzindo drasticamente a mortalidade infantil, além da mundialmente reconhecida eficiência do programa nacional de transplantes, por exemplo. No entanto, o histórico sucesso do Programa Nacional de Imunização, suscetível a visões equivocadas sobre a ciência, acende o sinal de alerta para o risco de um mortal retrocesso, fato que já afeta diretamente a vida dos mais vulneráveis. A precarização dos serviços de Atenção Básica é outro fator que fragiliza a ação do SUS “na ponta”, considerando que as prefeituras são cada vez mais resistentes a concursos públicos, permitindo que milhares de agentes de saúde permaneçam desprotegidos quanto a seus vínculos trabalhistas. A descontinuidade de gestão e precariedade das estruturas voltadas as ações de campo, bem como a saúde mental e física dessa categoria de trabalhadores do SUS, afeta diretamente a qualidade de vida dos moradores das favelas, no sentido que a permanência dessas trabalhadoras e trabalhadores está sujeita à visão política dos gestores municipais. O que defendemos a partir de tais premissas é uma gestão do Ministério da Saúde que se mostre claramente comprometida com os princípios constitucionais que norteiam o SUS. Assim como ocorre com as instâncias de maior relevância ligadas ao Judiciário e nos colegiados de controle social, temos como visão estratégica a garantia de mandato para a gestão do Ministério da Saúde, com anuência de um conjunto de gestores, pesquisadores e docentes, ligados ao SUS. Defendemos ainda que as favelas sejam foco de uma política setorial específica no campo da Saúde, assim como ocorre com populações indígenas, considerando o elevado nível de vulnerabilidade na qual viva a população de favela. Entendemos ser imprescindível ter a segurança alimentar e nutricional como ação de saúde pública, pois entendemos que a fome limita a capacidade produtiva dos cidadãos e, nos casos crônicos recorrentes nas favelas, pode levar à morte. Por fim, reivindicamos maior nível de proteção social aos agentes de saúde, enquanto categoria profissional, bem como o estabelecimento de um programa de educação permanente voltado à mesma, com foco na saúde de populações periféricas.