quinta-feira, 6 de março de 2025

ANCESTRALIDADE NO CARNAVAL: A COMUNIDADE RESISTINDO AO BRANQUEAMENTO DA AVENIDA

Ser Preta e gay no Carnaval: defesa coletiva de identidade (foto: Alma Preta)

Por Ivan Machado*

O Professor Luiz Simas diz que “A escola de samba educa”, se referindo a ocupação do buraco historiográfico que a educação formal ainda permite, mesmo anos após as Leis 10639/2003 e 11645/2008. Respectivamente, essas Leis, incorporadas à LDB, tornam obrigatório o ensino da história e cultura africana e indígena, em todo território nacional. Com isso, é digino de orgulho e aplauso ver que a escola que obedece tais preceitos, é a de samba, mesmo sem pactuação formal com o Estado, quanto a tais princípios.


O carnaval do Rio de Janeiro demonstra claramente sua condição de instância de resistência cultural afro centrada, enfrentando os bombardeios fundamentalistas, que têm origem em igrejas protestantes, sobretudo aquelas ligadas a figuras públicas na mídia ou na políticas. Sabemos que não é rara a encomenda de enredos, o que muitas vezes se dá pela necessidade de patrocínio por parte das agremiações, de modo que seja possível botar literalmente o bloco na rua. No entanto, é inevitável que as ligas carnavalescas contem com muitos enredos abordando a ancestralidade afro diaspórica. Mas, será essa uma característica exclusiva do carnaval fluminense?

"Magia" lançado em 1985, considerado marco do Axé Music


Os estados da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco foram, nessa ordem, os estados que mais exploraram a mão de obra africana para produção de riqueza, no período colonial. Esses três estados brasileiros sozinhos, já nos colocam como o país com o maior contingente de negros, fora do continente africano. Logo, deveria ser natural a preponderância da cultura afrobrasileira em nossas expressões culturais, o que sabemos não ser algo assim tão simples.


É preciso muita vontade política e econômica para criminalizar ou demonizar o carnaval, diante de uma população majoritariamente negra. Nesse ano de 2025, Salvador - BA celebra 40 anos do gênero musical denominado de Axé Music. Como o nome mesmo descreve, aquela música, oriunda de grupos ligados a terreiros de Candomblé, gradativamente deram lugar a um discurso midiático, voltado ao universo da Word Music. Logo, músicas como “Divindade do Egito” e “Protesto do Olodum”, deram lugar a músicas como “Canto da Cidade” e “Nega do Cabelo Duro”. Essa última, integrando o disco “Magia” de Luiz Caldas, tido como marco referencial desses 40 anos, em detrimento da produção musical e discurso de grupos afro, como Ilê aiyê e Filhos de Gandi. 


A cena musical pernanbucana, por sua vez, foi a grande mola propulsora do Axé Music enquanto movimento musical que, posteriormente, transformou salvador no centro de atração turística que conhecemos hoje. Armandinho, um dos guitarristas mais importantes da música brasileira, era um roqueiro, que criou um trio elétrico mirim, ainda no final dos anos 60, onde tocava frevos com sua banda. Em Pernambuco, no entanto, o frevo das guitarradas não é hegemônico no carnaval. Os maracatus, sim, são profundamente arraigados às tradições afro, com símbolos que agregam valor histórico e ancestral às alfaias, convivendo de forma respeitosa com as bandas de frevo, sem disputas de hegemonia midiática. 

"Ninguém entende nada": Paulo Barros sobre desfiles com tema afro


Ao dizer que “desfiles com temática africana são todos iguais e ninguém entende nada”, Paulo Barros, carnavalesco da Vila Isabel, abre uma discussão polêmica. Assim como se deu em Salvador, o carnaval do Rio sofre pressões constantes quanto a generalização de seu discurso. No entanto, parece que o sentido de Escola de samba guarda alguns pressupostos inegociáveis. Ceder ao embranquecimento do discurso na avenida esvazia e tirar das mãos da periferia preta o protagonismo do discurso em favor de nossa ancestralidade afro. Por outro lado, a diversidade de possibilidades temáticas afro centradas vai na direção contraria ao pensamento de Barros. São sambas bem descritivos aliados às alas, adereços e carros alegóricos,  reforçando o discurso de cada enredo, prendendo o público diante da tela ou nas arquibancadas, sendo pouco provável que as letras, exaustivamente repetidas na Avenida, não sejam decoradas e cantadas durante dias após, pelo folião.


Após a apuração do terceiro dia de desfiles no Grupo especial do Carnaval do Rio, o que fica de lição é o renovado ânimo das comunidades carnavalescas em expor seu orgulho quanto a própria negritude, através da beleza e da felicidade, bem diante das luzes e câmeras da grande mídia. A dança das cores, tão comuns entre povos originários e africanos, é a melhor expressão de nossa ancestralidade, possibilitando a nós renovarmos nossa metodologia de Resistência Festiva. Aqui em nosso estado, não colou aquele método midiático baiano de 30 anos atrás, quando tentava impor que “a cor dessa cidade sou eu”, com a branquitude soteropolitana metendo o pé na porta dos Ylês. Por aqui, a máxima é que “O povo é quem produz o show e assina a direção”.   


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* Ivan Machado é mestre em Educação, Especialista em Arte-Educação, professor de História e presidente do CCPBF