sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O DIREITO A SAÚDE E A CULTURA DE CRIMINALIZAÇÃO DAS PERIFERIAS URBANAS

 

Representantes do 146X Favela: pedido formal de audiência com o Governador

No dia 21 de agosto, uma comissão de representantes do coletivo 146X Favela, ligado ao Plano Integrado de saúde nas Favelas do estado do Rio de Janeiro, protocolou documento, no qual solicita agendamento de audiência com o Governado do Estado, no sentido de convencê-lo quanto ao equívoco de contingenciar recursos financeiros empenhados pela ALERJ, para ações de saúde em áreas carentes e periféricas, em nosso estado. E não é de agora que surgem cobranças quanto ao destino desses recursos para ações de saúde em favelas. Em 01 novembro de 2023, foi protocolado pelo mandato do Deputado Estadual Flávio Serafine, ofício destinado à presidência da Fiocruz e à Secretaria deEstado de Saúde, no sentido de pedir esclarecimentos quanto ao destino dado aos 25 milhões de reais que a ALERJ direcionou a ações de enfrentamento às precárias condições de saúde nas quais vivem milhões de pessoas moradoras de comunidades fluminenses de baixa renda.  Passado mais de um semestre desde as primeiras cobranças formais junto ao estado, o que eram 54 iniciativas locais, somam hoje, com o dedicado esforço da Fiocruz, 146 ações em diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, comprometidas com a saúde integral das favelas e que, infelizmente no que diz respeito ao governo estadual, ainda não são justificativas suficientes para garantir o acesso aos recursos financeiros que têm destinação específica. Nossas ponderações são no sentido de compreender se esse modelo de gestão da saúde reflete, como parece, o princípio da “micropolítica”, onde deliberadamente o Estado exerce violência extrema e cria “mundos de morte”, onde certas populações são submetidas a condições de vida precárias e à violência constante.


Desde 2016 o governo do estado do Rio de Janeiro vem renovando, em estreita articulação com a ALERJ, uma normativa que virou lei que “reconhece o estado de calamidade pública no âmbito da administração financeira” (Lei nº 7.483/2016). É um argumento que tem servido de justificativa para corte de gastos e contingenciamento de recursos financeiros essenciais para o bom andamento de políticas públicas, em várias esferas de governança. Esse manejo de recussos público se deu, por exemplo, com a gestão da cultura, quando se tentou desviar parte do Fundo Estadual de Cultura para tapar parte do rombo nas contas púbicas, o que não ocorreu por conta da eficiente mobilização da classe artística, quando produtores, técnicos e mestres da cultura popular fluminense se organizaram e por fim, barraram a intenção do governo.

Já em 2023 o alvo tem sido os recursos destinados à saúde nas favelas e demais árias vulneráveis em nosso estado. A questão aqui tem a ver com recursos financeiros no montante de R$ 25 milhões de reais, que têm origem no Fundo Especial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, destinados a ações locais, a serem gerenciadas de forma transparente e participativa pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com base na Lei 6.412/2022 que dispõe sobre a revisão 2023 do plano plurianual 2020-2023. No entanto, desde 2020, quando a pandemia da Covid-19 provou a criação de um programa global de saúde, nos demos conta de que o cuidado com populações vulneráveis é mais que um direito social. Se considerarmos que essa infinidade de vírus que nos cerca, está a cada dia mais resistente e adaptada aos nossos tempos, temos que nos preocupar com a necessária eficiência do SUS, estrutura fundamental para a sobrevivência dos mais pobres. Conforme citamos, há o sério risco de que passemos por mais um caso de desvio de recursos financeiros por parte do estado. Agora, em relação aos 25 milhões que têm origem na ALERJ, que se destina a execução de ações de saúde integral nas favelas, com ações coordenadas por uma das mais renomadas instituições de ensino e pesquisa em saúde, que é a Fiocruz.

O estado do Rio de Janeiro gastou mais de 12 bilhões de reais em Segurança Pública entre os anos de 2022 e 2023, ao passo que o montante destinado à saúde, não chega a metade disso, no mesmo período, segundo matéria do G1, publicada no último dia 10 de julho. Ocorre que nosso estado é o que menos gasta em saúde, segundo dados do governo Federal, sendo essa uma justificativa plausível para que o Legislativo fluminense destine recursos financeiros para esse fim. Isso, sem levar em conta o aporte de recursos oriundos de emendas parlamentares impositivas, onde 226,2 milhões foram destinados ao nosso estado, sendo 30% desse valor destinados compulsoriamente à saúde, nos levando ao entendimento que o contingenciamento de recursos financeiros voltados às favelas configura mais um caso de discriminação ou mesmo o típico racismo ambiental, se considerarmos em quais ações policiais são aplicados parte desses bilhões da segurança pública, em comparação às iniciativas governamentais de saúde nas favelas.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

FOLIA SETE ESTRELAS, O MATRIARCADO RETORNA A SUA JORNADA

 

Lacy e o núcleo familiar da Folia Sete estrelas do Rosário de Maria


Por Ivan Machado*

Lacy, mais conhecida como Lazinha, tem 57 anos e é a nova mestra da tradicional @folia_de_reis_sete_estrela.7 sediada em Mesquita, na Baixada Fluminense. 

Filha de Dona Maria Ana, matriarca da Folia Sete Estrelas do Rosário de Maria. Desde criança acompanho todas as fases da jornada de nossa bandeira, desde a costura das fardas, ensaios e preparação da alimentação dos convidados das nossas festas de arremate. Com o falecimento de nossa mãe em outubro de 2010, meu irmão Sidnei assumiu a folia, com muita dificuldade, por conta de seu trabalho que o fazia viajar de caminhão e ficar muito tempo fora de casa.  Nesse ano de 2024, após longas conversas sobre o risco de nossa folia parar suas atividades, resolvi assumir definitivamente a bandeira com minha filha Elizangela, que vai ocupar minha função de contramestre.

 Principais informações sobre a folia Sete Estrelas do Rosário de Maria

Ano de fundação da Folia: 1867
Número de componentes: 38
Endereço da sede da Folia: Rua Otacílio Tavares, 86 - Chatuba, Mesquita-RJ

 

Lacy com sua mãe, D. Mariana

É a partir relatos de Dona Mariana do município que se tem informações sobre a primeira saída da “Sete Estrelas”, em Monte Verde, distrito de Camanducaia, município de pouco mais de quatro mil habitantes, em Minas Gerais. Segundo ela, Seu avô Domingos Ramos deu início à jornada que, por sua vez, passou a bandeira para seu filho Antonio Jacinto que, por conseguinte, também passa a seu primogênito Antonio Jacinto Filho. Pelo fato de seu filho ser menor de idade e suas condições precárias de saúde, Jacinto Filho passa a bandeira para sua irmã Maria Ana. Após passar por municípios fluminenses como Itaperuna, Cambucí, Dona Mariana vem pra Baixada Fluminense, primeiro em Duque de Caxias e por fim, se instala no bairro da Chatuba em Mesquita, onde criou seus filhos e onde nasceram seus netos e bisnetos, todos envolvidos diretamente com a folia de Reis.

 O desafiador protagonismo feminino nas culturas populares

As mulheres sofrem constantemente com o machismo arraigada em muitas de nossas tradições populares. Ainda que seja a mulher quem sustenta com sua sabedoria e práticas a base de nossa cultura popular. É inegável que a sociedade urbana e capitalista mantenha suas estruturas, onde que é o homem branco hetero quem impõe seu modo de vida, sobretudo por ser esse o perfil de quem domina os meios de produção e acumula riqueza.

Mesmo entre grupos populares e tradicionais, muitas vezes espera-se que as mulheres assumam papéis tradicionais, como cuidar da família, da comida ou mesmo educar crianças, o que pode limitar suas oportunidades de liderança e participação em atividades culturais. Sabemos que mulheres de diferentes raças, etnias e classes sociais enfrentam desafios adicionais. No entanto, mulheres negras e periféricas podem enfrentar tanto racismo quanto sexismo de forma amplificada, o que complica ainda mais sua posição em grupos culturais. A violência, tanto física quanto psicológica, é  outro obstáculo significativo. Mulheres em posições de liderança podem ser alvo de assédio e violência, o que pode desencorajá-las a continuar em suas funções. A sub-representação de mulheres em posições de poder e decisão em grupos culturais pode perpetuar a desigualdade e limitar a diversidade de perspectivas e experiências.

Reafirmar a capacidade intelectual das mulheres é papel fundamental do homem que se diz comprometido com uma sociedade mais justa, exatamente porque a injustiça é algo comum entre grupos que não disputam a chamada economia da cultura, que se estabelece inclusive como modelo de gestão, o que relega a segundo plano as manifestações populares que surgem da base da sociedade, sobretudo no que se refere à camada menos favorecida economicamente. Assim, fortalecer a imagem da mulher líder em grupos de cultura popular e tradicional com as foias de reis, torna-se uma missão, considerando que novas gerações de líderes surgem naturalmente também nesses grupos. O lugar que Lacy ocupa hoje é então um espaço não apenas de liderança mas também didático e educativo por natureza.

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*Ivan Machado é historiador, produtor artístico e presidente do Centro de cultura Popular da Baixada Fluminense