Por Ivan Machado*
A história da democracia no Brasil sempre foi cheia de entraves e pedras pelo caminho. No entanto, alguns apontamentos por parte da sociedade, deram a direção para que avanços significativos se consolidassem em nossa estrutura republicana. Um marco histórico nesse sentido, sem dúvidas, foi o Decreto 91.144, publicado em 15 de março de 1985, criando assim o Ministério da Cultura, que se torna um dos principais referenciais da redemocratização brasileira. Agora, colocando nossas práticas sociais, crenças e festejos, não apenas no centro das discussões políticas. Uma fatia própria no orçamento da União, garantiria, a partir de então, as condições estruturais para os avanços nas políticas públicas setoriais da cultura.
Já se vai um quarto de século, desde que o Brasil adotou, do ponto de vista da gestão pública, o conceito contemporâneo e antropológico de cultura. A definição atual descreve a sociedade e pequenos grupos a partir de suas relações interpessoais, ritos, festejos e métodos de sustentabilidade, superando assim a antiga lógica que criava uma hierarquia, na qual a cultura popular e/ou tradicional era menos crível que a chamada “alta cultura”. É a partir daquele momento histórico que o Brasil cria as bases para a construção de um Sistema Nacional de Cultura, horizontalizando o acesso e a fruição de bens culturais, entre todos os entes federados.
As práticas sociais e estéticas, bem como a forma pela qual lidamos com elas, integram um conjunto de direitos, constitucionalmente estabelecidos, colocando a cultura no conjunto de direitos humanos (Art. 215). Assim, o acesso a bens culturais não é mais, segundo os ditames legais, sinônimo de privilégio às pessoas com maior poder de consumo e visibilidade midiática. Cabe agora à sociedade e ao Estado, regular tais práticas, mantendo-as sob constante e necessária revisão. Contudo, esse modelo, que apresenta mais acertos que equívocos, não se estabelece assim, num rompante.
É sabido que a virada do Século XXI contou com esforços que nos conduziram até esse momento, culminando com o importante avanço que foi a garantia de recursos financeiros que serviram de alívio à agentes e coletivos cultuais, expostos à Covid-19, por exemplo. Vale lembrar que até março de 1985, a cultura integrava o antigo MEC e as discussões decorrentes da ocupação desse espaço de poder possibilitou a criação da Fundação Palmares em agosto de 1988, antes mesmo da promulgação da então “Nova Constituição” em outubro. Fica então notório que os esforços empenhados em favor da redemocratização Política deu vários frutos, inclusive no sentido de humanizar as instâncias de governo, geraram efetivos resultados também na gestão da cultura.
Os avanços graduais que vivemos ao longo dessas quatro décadas, dá conta de que, assim como a base da sociedade interfere na produção cultural, o mesmo se dá no que tange a formulação e sistematização do conhecimento, capaz de produzir politicas publicas em consonância com a sociedade civil. Desde 2005, com a realização da primeira conferência Nacional de Cultura, surge um conjunto de diretrizes que, por sua vez, vêm de uma série de encontros municipais, regionais e estaduais, através dos quais foram estabelecidas as linhas mestras para a livre fruição da cultura, no Brasil.
Participaram daquele primeiro conclave 1.158 municípios, dos quais 19 estados e o Distrito Federal contribuíram com um total de 53.507 participantes. A maior quebra quanto a realização de conferências estaduais à época, ficou por conta da Região Norte, com os estados de Roraima, Amazonas e Pará, que não promoveram seus encontros. Goiás, Sergipe e São Paulo também optaram por ficar de fora daquela primeira mobilização. A partir daí, no que diz respeito à participação social nas políticas culturais, nada foi como antes.
O empenho da sociedade civil em interferir diretamente na formulação de políticas de cultura, levou o Brasil a se colocar como uma das principais referências globais, no que se refere a participação social para o setor. Já a 4aCNC, realizada em março de 2024, contou com a participação de todos os estados e o Distrito Federal, contando com um público que se aproxima dos 4.800 participantes, nos três dias de disputadas discussões.
Do MEC ao MinC, os conflitos entre centralismo e gestão participativa
Como já dissemos, no que se refere às políticas culturais, o Brasil já teve seu modelo hierarquizado de gestão, com estruturas que cultivavam a lógica das “belas artes” com preponderância sobre as expressões estéticas populares. Segundo Terry Eagleton (1993), “a estética também é um espaço de luta de classes”, no sentido de que esse ou aquele modelo de beleza atendem à visão de mundo de quem define as políticas públicas de cultura. E por conseguinte, o que deve ser absorvido como belo.
É possível compreender o olhar dos governos sobre a cultura, se tomarmos como referência as estruturas criadas ao logo do tempo, começando pela visão de D. João VI, que impunha um modelo de beleza a ser estabelecido como “bom gosto”, na então Capital do Império, vide a criação, em 1810, da Biblioteca Nacional. Em um período no qual as taxas de analfabetismo eram altíssimas, com escolas públicas quase inexistentes, o centro da Capital do Império recebe de um templo para a literatura, que privilegiava a elite letrada, enquanto escravizados, camponeses e povos originários não eram vistos nem mesmos como cidadãos.
Já na virada do Século XX e o fim da Monarquia, não houve mudanças significativas quanto ao acesso à Educação e à valorização da Cultura popular. A mentalidade das elites sociais e econômicas era de negação da Monarquia e sua centralização de poder. Porém, aquelas elites locais e regionais, que se aliavam em favor da descentralização de poder, tinha em perspectiva garantir a manutenção de seus privilégios nos territórios.
É claro que, a partir desses pressupostos, o analfabetismo cairia bem, no modelo de nação que se pretendia estabelecer. Manter uma camada social subordinada, reforçando com mitos e crenças locais, sem compreensão do poder contido em sua força de trabalho e no valor de sua capacidade criativa, era um trunfo a ser guardado na manga.
Segundo o historiador inglês Eric Hobsbawn (2002), “o nacionalismo vem antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto.” Ou seja, não é natural que a construção do nacionalismo surja a partir das estruturas de poder, inclusive do Estado, o que causa estranhamentos na base da sociedade e privilegia fatalmente o ideário de nação circulante entre as e lites dominantes, como o que ocorre na chamada Era Vargas.
A partir da revolução de 1930, o Presidente Getúlio Vargas entende que cabe ao Estado estabelecer as bases de uma identidade nacional horizontalizada. Para tanto, foi criado em novembro daquele ano o Ministério da Educação e Saúde Pública, muito motivado pelos elevados números relacionados a endemias, como a Febre Amarela. Assim, as questões relacionadas ao saneamento estariam ligadas ao processo educativo do povo brasileiro, com vistas à construção de uma nova identidade nacional.
A propaganda estatal dava conta de mostrar ao restante do país um brasileiro matuto, doente, incapaz de ascender socialmente, dadas suas predestinadas condições de vida e origem, cabendo ao estado definir o perfil dessa base social e determinar seu destino. Se antes o patriarcado era fragmentado, dando poderes aos antigos “coronéis” e seus latifúndios, agora é o “pai dos pobres”, como era popularmente chamado o Presidente Vargas, quem lucra politicamente com as dádivas franqueadas ao povo pobre e iletrado.
O Chamado Estado Novo, estabelecido na Constituição de 1937, reafirmava legalmente o princípio da centralização do poder imposto em 30, tirando de uma tacada só a autonomia dos estados federados, do Judiciário e do Legislativo. É nesse momento que é criado o IPHAN (Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937) forjando, a partir dali, a ideia de patrimônio cultural a ser preservado.
A educação patrimonial, à época, buscava sensibilizar a sociedade quanto a importância de ter preservados e protegidos monumentos e prédios históricos, centralizando estratégias no governo federal, para esse fim. É também nesse momento que se definem os primeiros critérios técnicos e científicos, basilares para a formação no universo do patrimônio material, inclusive no mundo acadêmico. No entanto, essa estrutura carecia ainda de algum mecanismo de participação social, a fim de dar o tom da gestão pública, a partir do olhar da sociedade civil, o que ocorre décadas afrente.
Em 1966, com a ditadura militar dando seus primeiros paços, é criado o Conselho Federal de Cultura. Um mecanismo de acompanhamento e proposição de políticas culturais, para subsidiar o regime militar quanto diretrizes que atendessem aos interesses dos militares. Esse mecanismo de controle social, aperfeiçoado e tão comum em nossos dias, surge no escopo de um conjunto de iniciativas, voltadas a propagandear de forma supostamente positiva, o regime, que demonstrava três estratégias básicas junto à produção cultural brasileira a época: censura prévia de toda produção artística, com restrição a discursos ou pautas contrarias ao regime; desenvolvimento de novas tecnologias e modernização da comunicação, visando difundir nacionalmente produções favoráveis ao governo; criação de estruturas governamentais voltadas à gestão da cultura, permitindo ao governo se envolver diretamente na produção artística nacional.
Nesse contexto, é criada em 1975 a Fundação Nacional das Artes - FUNARTE, órgão federal que teria como atribuição a gestão de espaços culturais, além de promover e acompanhar a produção artística em todo território nacional, além de promover agendas de circulação artística nos diversos segmentos. O mentor do modelo de gestão da autarquia naquele momento é o Ney Braga, experiente militar da reserva com vasta experiência na administração pública, desde os tempos de Vargas. É durante sua gestão que são também criados os conselhos nacionais de direito Autoral e de Cinema e a Campanha Nacional em Defesa do Folclore Brasileiro.
A condição secundária, a qual foram relegadas as culturas populares e tradicionais no Brasil, se desfaz apenas ao fim do lento e gradual processo de Abertura Política. A Fundação Palmares, ligado ao MinC, simbolo maior dessa mudança de paradigma na gestão da cultura, pode ser considerada a estrutura pública que inaugura a ideia de cultura como direito humano, aos olhos do Estado brasileiro.
São os movimentos sociais, sobretudo as comunidades remanescentes quilombolas, quem dão o tom de uma discussão que culmina na publicação do Decreto Federal nº 3.912, de 10 de setembro 2001. Por força da lei e a partir de então, passa a ser de competência da Fundação Palmares, o levantamento das comunidades quilombolas, bem como o reconhecimento público e registro dessas comunidades, com vistas à posse legal de suas terras, junto ao INCRA.
Durante o processo eleitoral de 2002, o então candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva, defendia em seus palanques a promessa de que, se eleito, garantiria a criação de ao menos um espaço cultural em cada um dos mais de cinco mil e quinhentos municípios do Brasil. No ano seguinte, já eleito presidente, Lula convida o cantor Gilberto Gil para compor o MinC e dar o pontapé inicial do Programa Cultura Viva, cujo carro chefe é a criação de uma rede de Pontos de Cultura, ação posta em prática a partir de 2004, que vigora até os dias atuais, ampliando a cada ano a adesão por parte da sociedade civil organizada.
A chamada Era Lula se notabilizou pelo desenvolvimento de uma gestão progressista e humanizada da cultura. Alguns paradigmas foram quebrados em relação aos modelos autoritários, como a possibilidade de acesso de coletivos culturais a recursos públicos, nos mais distantes rincões do nosso país. Com a aplicação do princípio constitucional de descentralização de recursos públicos, foi possível a execução dos Fundos Municipais de Cultura, algo que sempre teve visibilidade nas pastas da Educação, Saúde ou Assistência, por exemplo. Acessar recursos públicos e privados com o apoio do Estado brasileiro passa então a ser uma realidade, que produtores de pequeno porte passam a enxergar e executar, lançando luz sobre expressões culturais invisibilizadas.
O MinC, no contexto da “guerra cultural”
O que faz do MinC o ministério mais atacado pelo conservadorismo político e religioso, como percebemos na última década? Com um orçamento que não chega a 1,0% e um número de servidores aquém das demandas da sociedade civil e da própria gestão, o Ministério da cultura consegue apresentar maior eficiência no que tange a mobilização social, em comparação aos outros ministérios. São dados que parecem refletir no governo federal a capacidade de resistência de agentes e coletivos culturais, juridicamente organizados ou não, frente a uma parcela da sociedade que se incomoda com a diversidade e o livre pensamento.
Logo, podemos entender que é exatamente a penetração da cultura popular na base da sociedade, com sua diversidade e capacidade de interpretação do mundo à sua volta, o que oferece risco a quem defende a equivocada ideia de que “somos todos iguais”. Ou, pelo menos, desejam que assim sejamos, gerando o que essa camada conservadora chama de Guerra Cultural.
A justificativa de preservar valores caros à família tradicional brasileira, é, na verdade, a maquiagem utilizada por forças fundamentalistas avessas à diversidade e pluralidade de ideias, o que deveria ser natural em qualquer sociedade. Se considerarmos que a chegada dos navegantes portugueses às nossas terras, veio acompanhada pela cruz, enquanto símbolo da fé cristã hegemônica, não é difícil deduzir que a metodologia da dominação apenas se aperfeiçoou ao longo do tempo.
O fundamentalismo religioso no Brasil se adaptou à nossa realidade social e suas linguagens, criando o movimento gospel, que passa a investir pesadamente em autopromoção, formando quadros políticos a partir dos anos 80. É um modelo denominado no Brasil à época como “Igrejas Eletrônicas”, onde pastores doi Oeste dos EUA, como Billy Graham e Rex Humbard influenciaram os atuais pastores midiáticos que conhecemos. Hoje esse segmento busca se legitimar na disputa de narrativa, não apenas com a ocupação de espaços de poder político e econômico, mas também na disputa pelo direito de ser visto e aceito como movimento cultural.
Em maio de 2016, sob a justificativa de enxugamento da máquina pública, o então presidente Michel Temer, que assume o cargo após o golpe contra a presidenta Dilma Roussef, rebaixou a gestão da cultura à condição de Secretaria Especial, em resposta à Direita golpista que o apoiou. No entanto, o movimento intitulado “Ocupa MinC” varreu o país, com manifestações que forçaram a retomada do Ministério junto a estrutura do governo federal.
O que a direita conservadora passa a chamar de guerra cultural, como foi dito, não passava, na verdade, de uma dialética voltada a justificativa para a tomada de poder, carregada de simbolismos utilizados junto as massas. A construção desse imaginário coletivo teve as redes sociais como método de comunicação bem-sucedido, nos moldes do que foi a campanha de Obama, que o levou à presidência dos EUA em 2009, método esse, aperfeiçoado por Trump em 2016, por ocasião sua eleição e amplamente utilizado no Brasil.
O bolsonarismo e o Trumpismo têm método. A utilização de estruturas religiosas como igreja pentecostais, canais de TV e artistas evangélicos, interferem diretamente nas mentalidades, sobretudo na camada desalentada da população.
Além do rádio e da TV, como tradicionalmente ocorria, sobretudo na camada mais madura da sociedade, agora as novas tecnologias de comunicação alcanças os mais jovens, inclusive crianças e adolescentes, com linguagens que comunicam diretamente a essa camada social. Esses cidadãos em processo de formação se retroalimentam, através de uma metodologia de informação impregnadas de códigos sociais próprios, que mudam em uma velocidade maior que a capacidade de formulação das estruturas tradicionais de formação de conhecimento. Fato que tem dificultado o enfrentamento ao fundamentalismo e a intolerância, que vem se alastrando pelo macro território, autointitulado de Ocidental.
Há também quem veja o capitalismo como única saída para avanços sociais e supremacistas, que acreditam que a saída é a preponderância de um perfil Étnico-Racial, sobre os demais. A chama guerra cultural é uma necessidade estratégica (muitas vezes violenta) de tomada de poder. A participação social, ampla e democrática, é alvo permanente desses grupos, que não são majoritários, mas disputam ferozmente uma hegemonia que privilegia a centralidade do poder.
A cultura, no modelo Neoliberal de gestão pública
Sob o ponto de vista histórico, atribuirmos ao binômio Thatcher e Reagan o estabelecimento do neoliberalismo no Ocidente. Respectivamente primeira-ministra do Reino Unido e Presidente dos EUA, essas duas lideranças politicas deram o tem do modelo globalizado de gestão tendo a economia como eixo, tido por eles mesmos como um caminho sem volta.
O Instituto Liberal, organização que se destina a promover o Liberalismo no Brasil, publicou em 08 de fevereiro de 2021, em seu site, uma celebração aos 110 anos de aniversário de nascimento de Ronald Reagan. Na ocasião, o site atribui a seguinte frase ao ex-presidente dos EUA: “O governo é como um bebê. Um canal alimentar com grande apetite em uma extremidade e nenhum senso de responsabilidade no outro.”
Durante da década de 1980, a ideia de Estado mínimo, com desregulamentação da economia e fomento à livre iniciativa, dava o tom dos novos tempos. Com a motivação de ter o mercado como alavanca do desenvolvimento, protagonizando e financiando os avanços sociais, estava dado o mote no qual os jovens economistas e a comunidade capitalista dirigente investiam, o que faz eco até os dias atuais, vide o fenômeno Milei, na Argentina.
No Brasil, se considerarmos o recente período golpista, desde o Impeachment contra Dilma em 2016 até a derrota de Bolsonaro em 2022, haverá quem sinta saudades dos embates entre as esquerdas e o neoliberalismo, sobretudo nos governos Fernando Henrique Cardoso, quando de fato discutíamos cultura e sociedade no campo ideológico e político.
É importante, como pressuposto, considerar um referencial do neoliberalismo na gestão cultural brasileira, que foi a criação das Leis Federais de Incentivos fiscais à Cultura. A primeira delas é sancionada em 1986, pelo então Presidente José Sarney (Lei nº 7.505/1986) e a segunda e mais conhecida Lei Rouanet (Lei 8.313/1991). Criada em 1991 no governo Collor, a vocação da Rouanet era a de lançar a produção cultural brasileira nos braços da iniciativa privada que, por sua vez, priorizava produções capazes de ampliar a visibilidade e a relevância das empreses, na sociedade, assim como a chamada Lei Sarney já propunha.
A principal diferença entre os mecanismos do modelo de Collor em relação ao de Sarney, no que se refere ao acesso a recursos privados para a produção cultural, é que a Rouanet desenvolveu mecanismos mais eficientes e transparentes de controle. Podemos citar como o mais relevante a criação do Fundo Nacional de Cultura.
Quando Paulo Guedes, um homem que fez sua carreira no mercado financeiro, é posto à frente da economia brasileira, temos a noção de que mesmo o mais desorientado governo tem a economia como motor do desenvolvimento, alheio às reais necessidades da maioria da população. Fato que conclui de forma nítida que, segundo Boaventura Santos (2018) aparentemente, o capitalismo venceu a disputa com o socialismo.
As Culturas Populares na pauta do MinC
Na década de 1960, quando o estado do Rio de Janeiro estabelece o primeiro modelo de gestão da cultura no Brasil, a ideia se voltava a uma vinculação da pasta da cultura à de educação. Ocorre que tal visão apontava para a formação e a valorização do patrimônio material em detrimento do imaterial que, por sua vez, tem lastro nas culturas populares e tradicionais, como vemos hoje.
Vale observar que, aqui em nosso estado do Rio de Janeiro, o primeiro ato de registro do patrimônio cultural da então Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico (DPHA) ocorreu em 1965, ano de criação do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural-INEPC. O Parque Lage e o palacete ali existente foram os primeiros favorecidos, em relação a bens tombados. Mesmo tendo em seu organograma um Departamento de Folclore, ainda hoje não há mecanismo de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, o que se reflete na maioria dos estados federados.
A chamada Lei dos Mestres, que propõe a criação de um auxílio financeiro para mestres e mestras reconhecidos por suas contribuições à cultura brasileira tradicional, tramita na ALERJ desde 2019 (PL nº 1688/2019), após longos estudos e debates, também na sociedade civil, incluindo a UERJ. A nível federal, a Lei dos Mestres tramita desde 2011 (PL 1176/2011), sem previsão de discussão na CCJ, deixando claro que a motivação à preservação de bens materiais supera a relevância da contribuição indivíduos às nossas identidades culturais.
Na semana de Arte Moderna de 1922 foi levantada discussão sobre nossas identidades culturais a partir da base da sociedade, sejam elas urbana ou camponesa. Foi o primeiro momento de real humanização da cultura popular e tradicional, dando um dos primeiros significados antropológicos às humanidades, refletidas na ideia de folclore.
Segundo Nilza Megale (1999), o entendimento do que seja folclore hoje segue no sentido de que “pode ser definido como a ciência que estuda todas as manifestações do saber popular”, caracterizando-se pela sistematização do conhecimento não letrado. É claro que esse ponto de vista parte de quem formula conceitos e define regramentos quanto a observação de fenômenos que descrevem as mentalidades de populações periféricas. Fatalmente os saberes ali produzidos serão subjugados a uma visão de mundo mais ampliada.
Por ocasião do I Congresso Brasileiro de Folclore em 1951, um documento foi produzido, definindo as bases de um conjunto de regramentos que definiriam o que é e como lidar com os fenômenos socioculturais na base da sociedade. Vale lembrar, inclusive, que tais ditames surgem em um momento no qual a gestão da cultura ao nível nacional está atrelada à educação e a saúde. A I Carta do Folclore Brasileiro, produto final daquele congresso, serviu de base para orientar a gestão do Centro Nacional do Folclore, que viria ser criado em 1958. Nele é possível compreender, entre outras coisas, a como deveria ser a metodologia da pesquisa em folclore:
A atuação dos elementos integrantes das missões assistenciais visará precipuamente à assistência sanitária, educacional e cultural às populações participantes das romarias, procurando fixar, em particular, seus objetivos no seguinte: orientar o homem no sentido de sua fixação à terra, evitando a emigração; apresentar programas ou atividades que não entrem em choque com o espírito da romaria ou a mentalidade da população; programar seus trabalhos em horas que não perturbem os atos religiosos; prestigiar as manifestações artísticas autóctones, promovendo exposições de arte popular, festas de música e danças regionais, etc., de maneira a criar, no povo, interêsse pela conservação do que lhe é próprio em atividades artísticas; concorrer para a educação e o bom gôsto. (p.3)
O documento propunha orientações ao governo federal, quanto a verificar e intervir nas condições de saneamento e salubridade dos grupos. Também, levar filmes, brincadeiras e peças teatrais, contextualizando os grupos quanto ao que acontece no restante do país.
Nota-se aí que aquele ideário, cujo princípio visa a promoção de um gosto a ser absorvido pelos iletrados, transpassou os sistemas monárquicos e republicanos. Ou seja, ainda se gasta milhões na manutenção de edificações históricas e, de fato, relevantes para a preservação da memória e da paisagem urbana. No entanto, deve-se ter em mente que é nas mutações inerentes às manifestações de base social, que podemos identificar com melhor clareza do que são feitas nossas identidades nacionais.
O que identificamos na prática é que as expressões culturais que emergem da base da sociedade ainda precisam exercer um esforço significativo, sobretudo quando o modelo de gestão cultural tende, ainda hoje, a privilegiar a chamada economia da Cultura.
O MinC, sobretudo nos últimos vinte anos, promoveu avanços significativos no que se refere a consolidação de mecanismos de controle social e de escuta. Sim, a sociedade civil tem garantido lugar no debate quanto aos rumos da cultura nacional, cabendo ainda ao governo federal oferecer garantias para a eficiência desse pareceria, nos estados e municípios. É também importante observar que ainda vivemos sob risco de retrocessos, sobretudo se considerarmos a eficiência de uma parcela significativa da sociedade que se demonstra extremamente reacionária, que desenvolveu expertise no que se refere ao uso das mídias sociais. Algumas delas, criadas especialmente para oferecer acolhimento de ideias contrárias a diversidade de práticas e pensamentos, na sociedade contemporânea.
Cabe, portanto, à sociedade civil organizada, se mobilizar, no sentido de consolidar o MinC como principal canal de escuta e debate diante da sociedade brasileira, haja vista que o totalitarismo político demonstra estender raízes pelo mundo, contaminando as bases da sociedade, em um modelo ainda mais nefasto de globalização.
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*Ivan Machado é Professor de História, Mestre em Educação, especializado em Arte-Educação e, atualmente é presidente do Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense.