sábado, 9 de novembro de 2024

II SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA E PERIFÉRICA – SOBRE O “NÓS” E O SER”, NA BAIXADA FLUMINENSE




Texto de Ivan Machado*

O ano é 2023, quando surge no cenário televisivo o jovem cantar MC Cabelinho, que desde 2016 vem crescendo na cena musical carioca, tendo o RAP, o TRAP e o Funk como linguagem, que o colocou no topo das plataformas digitais de música. É ele quem viraliza o termo “A favela venceu”, com uma faixa musical na qual exalta seu sucesso, enquanto critica quem não acreditava em seu esforço.

Olha aí a favela no auge Te falei que esse sufoco um dia acabaria Nós driblou toda essa falta de oportunidade Conseguimo e 'to vivendo da minha correria, quem diria?

Ocorre que esse jovem de origem favelada, que conseguiu furar o forte bloqueio da mídia hegemônica, alterna o “nois” e o “eu” como agente do sucesso, sempre se referindo à própria trajetória, sem citar um parceiro ou coletivo se quer. Qual é então a devolutiva desse sucesso para a favela e o quanto seu discurso incentiva a ação coletiva e a criação de espaços de fomento ao protagonismo? Quais valores culturais da favela são exaltados ou qual é a cara da favela que se reflete enquanto território, a partir da obra desse artista? Nesse caso, poderíamos entender que ele representa a trajetória de sucesso da favela como um todo ou mais um exemplo de talento individual emergente, a quem foi permitido brilhar?

Quando optamos em 2023 por apresentar uma nova perspectiva para a ideia de consciência Negra, a partir de um olhar mais atento sobre o povo preto da Baixada Fluminense, pensamos em levantar ponderações quanto aos desafios de quem “é”, a partir do “nós” de cada pessoa negra e periférica em seu contexto.  Levamos também em conta que as celebrações do 20 de novembro ocorrem majoritariamente nos locais de grande visibilidade midiática e circulação pública, na Cidade do Rio de Janeiro. O contraditório se dá em relação ao fato de que as grandes manifestações nessa data ocorrem onde a maioria da militância negra Fluminense não firma residência ou partilha seus afetos, em detrimento da efervescência cultural de nossa negritude regional, em territórios descentralizados.

São raros os casos de descendentes de famílias negras que já nascem em condições financeiras abastadas, construindo vínculos sociais e moradia, em áreas nobres das metrópoles. A forte relação de nossos jovens com territórios onde se estabeleceram nossos mais velhos e muito significativa, mesmo diante de eventual ascensão social ou financeira. Nossa juventude negra ainda mantém fortes laços afetivos com seu lugar de origem. Muitos desses, por conta da especulação imobiliária da Capital e a oportunidade de se estabelecer em terreno próprio da família, o que justifica a contradição entre ser periférico e buscar melhoria no poder de consumo.

Nossa negritude e a Baixada Fluminense

A pesquisadora Lucia Helena da Silva, escreve em seu artigo “Hildebrando de Goes e sua leitura sobre História da Baixada Fluminense” (2019), que a primeira publicação que dá conta de teorizar sobre a Baixada Fluminense enquanto região foi o relatório da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, publicado em 1939, por Hildebrando do Goes.  Segundo ela, o

“Termo inicialmente vindo da geografia, mudou o seu sentido ao longo do tempo e nas últimas cinco décadas remete a uma imagem que está intimamente ligada à pobreza, ao abandono dos poderes públicos, à ausência de estrutura urbana e à violência”.

No documento, o engenheiro descreve aspectos que vão além da análise topográfica para fins de obras públicas. Goes se debruça sobre questões relacionadas aos fatores que históricos que transformaram a região em um território insalubre, mesmo após o período de avanços na economia, que se dava em acordo com as condições naturais da região, como a navegabilidade dos “flumens”, rios navegáveis como Pilar, Meriti, Iguassú, Sarapuí e Estrela, amplamente utilizados para escoar a produção agrícola até a Baia de Guanabara. O principal elemento motivador do declínio desse modelo de ocupação urbana e desenvolvimento econômico foi a construção da malha ferroviária que, a partir de 1854, com a inauguração da estação Magé, criando um novo caminho de acesso e o gradativo abandono das antigas terras e o assoreamento dos rios, devido o também gradual abandono das hidrovias. O resultado foi o alagamento das páreas abandonadas, dando lugar Malária, doença que afastava qualquer possibilidade de ocupação permanente do território. Soma-se a isso uma série de atrativos como Segurança Pública crescimento do comércio, por exemplo, que incentiva ainda hoje a vinda de novos habitantes.

A Baixada Fluminense, com seus quase 4 milhões de habitantes e mais de 2.4 milhões de pessoas que se declaram negra, segundo o IBGE (2022), tem boa parte de seus municípios com IDH acima da média nacional. Considerando a grande massa da população dessa região, os dados oficiais mostram que há na Baixada Fluminense uma grande concentração de riqueza, advinda de indústrias e um comércio bastante dinâmicos, exatamente por conta do adensamento populacional e seu público consumidor, além do acesso rápido à Rodovia Presidente Dutra, por onde circulam produtos, matéria prime e a grande massa de trabalhadores. Muitos empreendedores, servidores públicos e militares, entendem que é menos dispendioso habitar esse imenso território, que está a menos de uma hora de carro, do Centro do Rio e da Zona Sul, em condições favoráveis de trânsito e clima, fatores que o mercado imobiliário conhece e explora. Devemos considerar também que nossa região abriga um número expressivo de negros e negras, cuja produção intelectual contribui significativamente com a formação de humana de jovens que conseguem ter acesso à Academia. Tal fenômeno contribui significativamente para a elevação da autoestima dos jovens estudantes, ao passo que se torna notória a importância de universidades públicas na região, bem como a demanda pela edificação de mais espaços de formação superior. O que percebemos como resultante da formação e consequente produção intelectual de professores e alunos negros na região é exatamente a elevação do nível de consciência, a partir de um recorte geográfico, cujo território remonta nossa histórica busca por um lugar no qual nos seja possível construir identidade, pertencimento e elevação no nível de questionamento sobre a própria realidade sociocultural.

A “Mãe da Baixada” e a emancipação de seus filhos

A pesquisadora Lucia Helena da Silva, escreve em seu artigo “Hildebrando de Goes e sua leitura sobre História da Baixada Fluminense” (2019), que a primeira publicação que dá conta de teorizar sobre a Baixada Fluminense enquanto região foi o relatório da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, publicado em 1939, por Hildebrando do Goes.  Segundo ela, o

“Termo inicialmente vindo da geografia, mudou o seu sentido ao longo do tempo e nas últimas cinco décadas remete a uma imagem que está intimamente ligada à pobreza, ao abandono dos poderes públicos, à ausência de estrutura urbana e à violência”.

No documento, o engenheiro descreve aspectos que vão além da análise topográfica para fins de obras públicas. Goes se debruça sobre questões relacionadas aos fatores que históricos que transformaram a região em um território insalubre, mesmo após o período de avanços na economia, que se dava em acordo com as condições naturais da região, como a navegabilidade dos “flumens”, rios navegáveis como Pilar, Meriti, Iguassú, Sarapuí e  estrela, amplamente utilizados para escoar a produção agrícola até a Baia de Guanabara. O principal elemento motivador do declínio desse modelo de ocupação urbana e desenvolvimento econômico foi a construção da malha ferroviária que, a partir de 1854, com a inauguração da estação Magé, criando um novo caminho de acesso e o gradativo abandono das antigas terras e o assoreamento dos rios, devido o também gradual abandono das hidrovias. O resultado foi o alagamento das páreas abandonadas, dando lugar Malária, doença que afastava qualquer possibilidade de ocupação permanente do território. Soma-se a isso uma série de atrativos como Segurança Pública crescimento do comércio, por exemplo, que incentiva ainda hoje a vinda de novos habitantes.

Desde os anos 40 até o final do Século XX, Nova Iguaçu, apelidada de “mãe da Baixada Fluminense”, viveu uma série de emancipações político administrativas, por parte de alguns de seus importantes distritos, sob a justificativa de alavancar o progresso de alguns territórios. A justificativa comum entre os emancipacionistas desses municípios era a possibilidade de resolver questões locais com mais agilidade, a partir do entendimento dos novos munícipes, quanto a ideia de progresso. Ocorre que o período citado também coincidiu com a explosão da migração interna para a região, além da vinda de imigrantes europeus que para cá vieram, já na virada do Século XX, chegada essa que se intensifica no período entre I e II guerras. Esses últimos se estabeleceram na região, abrindo pequenos negócios ou investindo na lavoura, gerando renda familiar a partir do consumo precário dos primeiros migrantes brasileiros e na exportação de laranja. Já nos anos 50 e 60 o número de nordestinos expulsos de sua região pela seca extrema, produz um crescimento demográfico em uma proporção nunca antes vista. Todavia, a baixa escolaridade da grande maioria desses novos baixadenses não possibilitava acesso às poucas vagas de emprego qualificados nas grandes indústrias aqui existentes, como a Bayer em Belford Roxo, inaugurada em 1958, a refinaria da PETROBRAS em Duque de Caxias em 1961 ou a BRASFERRO em Mesquita, inaugurada em 1966 e encerrada em 2008. A baixa oferta de serviços públicas e privados, aliada à pouca oferta de emprego e o baixo custo das passagens dos trens à época, apresentavam a Capital como única oportunidade de geração de renda para a grande maioria da população economicamente ativa. Essa massa de trabalhadores e trabalhadoras perdia longas e cansativas horas entre idas e vidas, além das pesadas jornadas de trabalho que lhes era imposta, fazendo com que seu tempo em casa se resumisse a poucas horas diárias durante a semana, impondo aos municípios da região o estigma de “Cidades dormitório”.

A virada do Século XXI desenha uma nova face da Baixada Fluminense, tendo o desenvolvimento econômico como chave de virada. Pelo menos uma dezena de shopping centers da REGIÃO nos fazem pensar no poder de consumo dos habitantes dessa região. São verdadeiros centros de entretenimento que contam com centenas de consumidores e visitantes diariamente, demonstrando que as classes C e D também querem exercer o direito usufruir dos bens de capital que lhes salta aos olhos todos os dias nas telas à sua frente. A chamada constituição Cidadã, que entra em vigor em 1988 também exerceu grande influência no poder de compra de trabalhadoras e trabalhadores na região, por conta do princípio administrativo da descentralização da gestão pública. Com um dispositivo legal que garante repasses Fundo a Fundo, as prefeituras vislumbram um horizonte antes impossível, tendo então os percentuais do Fundo de Participação dos Municípios e os repasses impositivos para Educação, Saúde e Assistência, garantindo um arcabouço financeiro à gestão local, capaz de fazer das prefeituras a principal fonte de emprego e renda da maioria das cidades fluminenses. Agora, muitos filhos e netos daqueles que antes, para cá vieram, sem perspectiva de efetivo progresso, agora incentiva seus mais novos a buscar algum nível de formação, de modo a ocupar seu quinhão ao lado de alguma figura pública que o apadrinhe, em suas cidades.

A Baixada Fluminense conta hoje com 8 campus de universidades públicas, nos quais, muitos docentes são oriundos da própria região, o que eleva o nível de empatia dos alunos, elevando também o nível de aproveitamento acadêmico e o número de concluintes. Assim, o fato de existir um acesso à universidade pública na mesma região onde nossos pais e antepassados construíram suas histórias de vida, é algo que pode contribuir para a elevação da autoestima de quem aqui vive e busca acesso a uma formação intelectual de qualidade.

O CCPBF adota a ideia de que consciência negra é algo que deve sim ser encarado de forma coletiva, mas também com recorte geográfico, sobretudo se considerarmos a peculiaridade de cada um dos 13 municípios da Baixada Fluminense, cada um com seus avanços e desafios. Ser negra ou negro periférico exige um nível a mais de consciência. Portanto, ser gente preta da Baixada é também fazer parte de uma realidade na qual podemos e devemos interferir de forma coletiva e sistemática, de tal modo que nossa identidade reflita a realidade do território, superando assim o estigma que nos é imposto, como um tipo de vício de origem, que impõe um muro diante de nossos esforços, talentos e capacidades. Se os lugares de privilégio historicamente são ocupados por homens brancos, ricos e mais velhos, há que se pensar na necessidade de elevação de nosso potencial técnico e intelectual, a fim de efetivamente entrarmos na disputa por espaços de protagonismo além daqueles, tradicionalmente atribuídos à malemolência. 

O Mercado já compreende a importância da negritude periférica no que se refere à seu potencial econômico, daí a diversidade de produtos midiaticamente direcionados a esse perfil de consumidor. Isso se dá não pela benesse ou espírito de equidade do capitalismo, mas pela visão estratégica sobre os hábitos de consumo da população negra Fluminense, que tem acesso às diversas inovações possíveis de adquirir, muitas vezes a pouca distância de seu lugar de moradia. Se entendemos que o consumo é direito nosso ou temos a renda necessário para tal, não abrimos mão de acessar esse ou aquele produto que nos garanta algum nível de bem-estar. No entanto, ainda que muitos empreendedores e infuencers se aventurem na política com o discurso de arejar e dar eficiência à coisa pública, não notamos a utilização da mesma metodologia de facilitação de acesso a direitos, mas apenas a tentativa de deturpação da ideia de estado, através de gestores que buscam estabelecer um modelo ainda mais perverso e personalista de Estado mínimo. Uma possível é fazer valer, a partir de uma mobilização coletiva, o princípio constitucional da equidade, cobrando eficiência e horizontalização de ações de estado, de forma consciente por nossa parte. É cobrar que o aparato estatal cumpra seu papel aqui, onde vivemos, de modo que não seja necessário disputar o lugar de privilégio de quem sempre o ocupou e estabeleceu que ali não é nosso lugar. Essa é então a relevância de uma visão clara de que consciência negra se faz, se vive e se estabelece principalmente aqui, no nosso lugar.

Semana da Cosciência Negra e Periférica - programação 2024

Nesse ano o CCPBF opta por uma proramação que priorize a importância da escola como espaço cultural nato. Espaço esse, capaz de questionar e debater a sociedade e oterritório, a partir de uma perspectiva antirracista, a patir da comunidade escolar.  

Veja abaixo a programação e também no perfil do Instagram mais detalhes.

18/11

- palestra Sandra Souza, Marize Justino e Andressa - Disscussão sobre racismo estrutural, letramento racial e educação  antirracista, sob o olhar da mulher preta - 18:30h - público em geral

- lançamento de livro "Todo Preto, de Ele Semog -20h - público em geral Local: sede do CCPBF

18 a 20/11

- Expo Os novos da Folia - a importância da juventude  como garantia do presente e do futuro das expressões culturais afrocentradas - exposição permanente 

Local: sede do CCPBF - público em geral

- Ivan Machado e o projeto Percussa na Escola - oficina de percussão em dois promeiros turnos letivos 
Local: CIEP 111 - Alunos do Ensino Fundamental

19/11

- Macedo Griot e seus Contos africanos 
Local: CIEP 111 - 19/11 - turma de EJA Ensino Médio - noite

20/11

- Exibição de Curta - Mestre Nego: Boas Novas de Belém e a Cultura Popular - 19h

- Roda de Samba - Samba de Cadeira: "é sentar e ouvir o qie conta e o que canta o compositor da Baixada Fluminense " 20h
Local: sede do CCPBF - público  em geral

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* Ivan Machado é professor de História, mestre em Educação, especialista em Arte-Educação e presidente do Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense

domingo, 20 de outubro de 2024

Governador, onde estão os 25 milhões para saúde nas favelas? a sociedade que saber!

Representantes do coletivo 146X Favela e apoiadores, no Clube de engenharia

 Sexta-feira, 18 de outubro, foi o dia no qual o coletivo de projetos que compõe o 146X Favela se reuniu no Clube de Engenharia, para apresentar mais uma vez à sociedade um conjunto de justificativas para o acesso a 25 milhões de reais que o governo do estado do Rio de Janeiro insiste em reter. Para ampliar ações de saúde voltadas a populações que vivem em favelas e demais comunidades periféricas, a ALERJ disponibilizou, em 2021, 20 milhões para lançamento de editais através da FIOCRUZ, cujos valores o Governador Claudio Castro reteve. Há hoje risco de novo contingenciamento, agora de 25 milhões da mesma fonte de recursos, tendo em vista a negativa do governador Cláudio Castro em dar retorno às diversas tentativas de diálogo sobre o assunto. A proposta é ampliar o número ações de saúde nas favelas, a partir das próprias lideranças locais, de modo a contribuir para a elevação no nível de informação e acesso à saúde, propondo alternativas que contribuam para estabelecer políticas mais eficazes e objetivas, nos territórios.

A arte, influenciando a ação de saúde

Cartaz do filme 5X favela: inspiração ara o movimento

Em março de 2021 foi lançado pela Fundação Oswaldo o primeiro edital do Plano de Enfrentamento à COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro, o qual recebeu um apelido inspirado no filme “5X Favela – Agora Nós por Nós”. Esse edital no valor total de 20 milhões, passou a ser identificado por seus integrantes como 54X Favela e contemplou iniciativas que pudessem mitigar os efeitos da Covid-19 em comunidades que já vivem na prática uma condição de isolamento social, agravada então pela Pandemia. Ao final dessa primeira iniciativa, mais de 100 mil pessoas foram alcançadas em 75 favelas de nosso estado, demonstrando assim a relevância de uma ação de saúde coletiva realizada em parceria com lideranças locais e estruturas públicas de saúde. A ideia do “nós por nós” cresceu, tendo em vista que as ações iniciais levantaram questões importantes que não poderiam mais ser ignoradas, como a Tuberculose e a fome. Nessa nova chamada, o coletivo que promove de ações locais de saúde se eleva para 90 iniciativas. Agora são ações focadas também na segurança alimentar, comunicação e informação, emprego e renda, sustentabilidade e educação. Mesmo com o sucesso das iniciativas nessa segunda etapa, o governo do estado se mantinha alheio ao diálogo quanto a liberação dos recursos já destinados aos objetivos do Programa de saúde Integral nas Favelas, ao que surge o auxílio da própria FIOCRUZ, que disponibilizou recursos próprios para que as ações não fossem encerradas. Foi a destinação de 25 milhões da ALERJ em 2023 que motivou o lançamento de um segundo edital do mesmo programa. Agora o Coletivo de coordenadores dos projetos que integram o Programa 146X Favela reivindica o desbloqueio dos recursos, mais uma vez retido pelo governador Cláudio Castro. É importante considerar que foram 275 mil pessoas diretamente beneficiadas, sendo o combate a fome o fator que mais impactou os territórios, com 370 toneladas de alimentos distribuídos, números que serão facilmente dobrados ao fim dessa terceira etapa, o que já se torna uma justificativa para que o desvio de finalidade desses 25 milhões não se dê, mais uma vez. São iniciativas que contribuem diretamente para a elevação no nível de cidadania dos territórios, possibilitando, em perspectiva, o desenvolvimento de uma nova cultura de direitos, com menos paternalismo e maior consciência de quem vive em condições de vulnerabilidade.

Estel, acolhendo o coletivo 146X favela
em nome do Clube de engenharia

Vale um destaque especial a cada apoio dedicado ao pleito do coletivo 146X favela, que surge de diversas frentes. O Clube de engenharia, por exemplo, criado no final do Século XIX, dedica hoje, através de sua nova diretoria, uma especial preocupação com o desenvolvimento socioambiental das comunidades periféricas. Bom exemplo disse vem do acolhimento de nosso coletivo, através do engenheiro Sanitarista Estel, a quem os moradores da Chatuba conhecem muito bem.  Durante a vigência do Programa Nova Baixada (2000-2003), Estel contribuiu significativamente para a humanização dos serviços de saneamento básico no território, demonstrando respeito pela opinião das lideranças locais, o que garantiu a elevação do IDH do municípios em anos posteriores. de igual modo, a imprensa também compreendeu a relevância dese movimento, vide a matéria publicada na coluna de Ancelmo Góis no site e no jornal O Globo, no mesmo dia do evento. A matéria destaca os avanços possíveis, caso o governador claudio Castro não repita o contingenciamento de mais esse recurso para um programa específico de enfrentamento da precariedade da saúde nas favelas fluminenses.    

É possível fazer muito, caso o governo libere os 25Mi
É possível avanças, caso o Governo do estado cumpra a lei

O estado brasileiro não produz cultura, mas tem interferência direta nas estruturas que podem interferir nosso modo de vida. É com base na oralidade e em nossa tradição de lidar com ervas e plantas que compreendemos, por exemplo, como a automedicação teve adesão entre pessoas de baixa renda e de pouco acesso a especialidades médicas. Quando observamos como nosso Sistema Único de saúde vem sofrendo ostensiva perseguição por parte de quem vê saúde como negócio, entendemos que investir em um Plano Integrado de Saúde nas Favelas pode ser uma forma didática de propor um novo olhar da população às condições de saúde em seus territórios. O Centro de Cultura Popular da Baixada fluminense, integrante do coletivo 146X Favela, se alinha aos demais coletivos, parceiros institucionais e parlamentares, cobrando do governador Cláudio Castro a imediata liberação do 25 milhões de Reais, pela saúde plena de nossa gente.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

A VANGUARDA E A CRIATIVIDADE DE GENTE QUE O ETARISMO ESCONDE

 

O que nos conecta e nos dá felicidade? (imagem gerada por IA)

Por Ivan Machado*

O etarismo, palavra que define a discriminação por conta da idade, tem sido cada vez mais evidente nas relações sociais, nas políticas de direitos e até mesmo na cultura do trabalho, no sentido que o senso comum define o idoso como alguém que não se encaixa nesses novos tempos de acesso imediato à informação e aos meios de produção de massa. Isso se dá não exatamente por conta das novas tecnologias, mas ao que se refere a distância entre produção e consumo, distanciamento social, imediatismo e, consequentemente, à forma rasa como lidamos com a informação e a transmissão de conhecimento nos dias de hoje. No entanto, em se tratando de expressões tradicionais da cultura, o “mais velho” se mantém como referência no que diz respeito a memória e acúmulo de sabedoria que, por sua vez, desagua na oralidade enquanto método de comunicação social e formação em vários sentidos, o que não entre necessariamente em desacordo com o tempo presente e seus estamentos. Para contextualizar essa breve discussão sobre o etarismo e o acesso à informação e ao que consumimos, no contexto das culturas populares, penso que vale tomar como referência as contradições existentes entre redes sociais, que se distanciam em relação a seu uso ao longo do tempo, entre faixas etárias distintas. 

Completados 20 anos de existência em fevereiro 2024, me veio à mente que o Facebook de Mark Zuckerberg e seus colegas de faculdade, forjou a ideia de Rede Social. A proposta inicial era a de conectar pessoas de diversos perfis e grupos sociais, diminuindo distâncias, dando assim outro sentido à ideia de globalização. Ocorre que mesmo dentro dessa vanguardista mídia social, naturalmente surge um fenômeno típico de uma cultura de base, que é o agrupamento de pessoas por afinidades, e com o passar dos anos foi possível aos seus idealizadores, assimilar e lucrar com a ideia de que o ser humano tende a se fechar em grupos de interesse, principalmente no que se refere a opinião e visão de mundo. Já o TikTok foi criado em 2016 por uma empresa chinesa e, assim como se deu com o Facebook em 2004, sua faixa etária também compreende majoritariamente jovens e adultos jovens com idades entre 16 e 35 anos, segundo dados da própria plataforma. Surge assim uma empresa voltada puramente ao entretenimento, na qual as discussões sobre sociedade e suas relações não são parte relevante dos vínculos a serem estabelecidos. O fenômeno que desagua no imenso mar da informação e troca de ideias em nossos dias é que o usuário de TikTok não é chegado ao “textão” e ao debate. É uma plataforma que prioriza performances audiovisuais de poucos segundos, no lugar de troca de ideias, impulsionando expressões inusitadas e divertidas da sociedade, como forma de atrair pessoas. É interessante pensar inclusive na fala de um dos primeiros desenvolvedores do Instagram, quando diz que “se uma plataforma digital oferece acesso gratuito, com certeza o produto é você”, se referindo à grande quantidade empresas que compram informações relacionadas ao perfil de consumo dos assinantes dessas plataformas online. Segundo a Revista Exame, a capacidade de aliar fotos e vídeos bastante diversificados, faz do Brasil o segundo país mais lucrativo para o Instagram, depois dos EUA. Se considerarmos que pessoas com quarenta anos ou mais em sua maioria ainda preferem o Facebook,  é possível deduzir os motivos pelos quais grande parte dos brasileiros com mais idades preferirem não migrar para outras redes sociais. Podemos considerar então a existência de um tipo de “etarismo digital”, no sentido que, vinte anos depois, muitos preferem manter seu lugar de boas memórias, vide as “lembranças” que o Facebook oferece para repostagem, em um tipo de álbum de fotos antigas que a gente revê de quando em quando, habito que um adolescente típico simplesmente ignora.

Outro fator importante a ser compreendido sob a viés do etarismo é o que define gosto e consumo, não mais a partir de uma apreciação e desejos, desenvolvidos a partir do seio familiar ou de pequenos grupos sociais. Em março de 1816 chegou ao Brasil uma missão de artistas franceses, com a Real missão de trazer o belo o novo, em um nível elevado de refinamento, de modo a estabelecer uma cultura mais palatável para os novos tempos. A final, era uma época na qual tínhamos o único rei comandando um país nas américas. A partir daí, tudo que existia esteticamente atraente passaria a ser considerado no máximo, folclórico. Já em nossos tempos, é possível verificar que, partir de 2010, a opinião sobre beleza e vanguarda se torna um tipo de direito adquiriudo por parte de profissionais das redes sociais. Amplamente conhecidos hoje sob o status de influenciadores digitais, pessoas passam a ser pagar por empresas para divulgar produtos e convencer potenciais consumidores, sobretudo com o advento do algoritmo. Essa agora é uma ferramenta que potencializa o olhar de quem acessa as redes sociais, criando um ciclo de luzes que atraem espectadores como moscas. Assim, o gosto é transformado em algo que se aprimora à distância e ao longo do tempo, influenciando uma geração inteira, inclusive gerando conflitos pessoais em quem conheceu a ideia anterior de desejo, produção e consumo.

O etarismo se faz perceber inclusive na chamada economia da cultura ou Economia Criativa, enquanto modo de produção e modelo de gestão. Os fatores que definem nossas identidades, são percebidos com mais naturalidade na base da sociedade que, por sua vez, cria capilaridade nas demais camadas sociais, vide o que ocorre com o carnaval e a glamorosa festa dos bois Caprichoso e Garantido. Definir a estética da cultura meramente como um produto a ser consumido a partir de uma eficiente exposição midiática é um equívoco. As culturas populares se movimentam ao sabor de seu próprio tempo, ainda que fazendo uso das redes sociais como forma de criar vínculos e visibilidade. É claro que uma feira de artesãs necessita de um perfil no Instagram para criar referência de localização, acesso e venda de seus produtos. No entanto, em relação a visibilidade desses, não existe em um grupo de Chorinho, por exemplo, a mesma pressão que sofre uma banda de algum gênero pop, cujas contratação, lotação do show, bem como sua credibilidade, estão diretamente atreladas à quantidade de seguidores e curtidas, preferencialmente aos milhares ou milhões. Nesse caso, o modelo de gestão focado na economia da cultura também tornam-se mais um fator importante na manutenção do etarismo, algo que até mesmo gestores renomados de cultura corroboram, haja vista que postagens em redes sociais são hoje a principal forma de comprovação da atuação dos grupos criativos, no campo da cultura e acesso a recursos púbicos. 

Outra conclusão à qual podemos chegar é que o etarismo é também percebido pela forma como o Mercado explora a produção industrial e a faz chega até nós, mesmo em tempos de recessão extrema, como vemos a partir de 2020, com a Pandemia da covid-19 e o decorrente isolamento social. Nesse período muitas lojas físicas passam a aderir ao modelo de vendas online, enquanto estudos mostram que, naquele ano, as vendas pela internet passaram de 5% para 10%, chegando a um montante de 61% das vendas, em comparação com as vendas em lojas físicas. Nesse ano de 2024, é possível contar nos dedos de uma das mãos quem são as pessoas de nossas relações mais próximas, que não têm em seus Smartphones um app do Mercado Livre ou Shopee e em que faixa etária estão essas pessoas. Um dado pouco difundido na mídia é que as vendas em lojas ainda atendem a 75% das vendas e que há redes de varejo adotam o chamado omnichannel, onde o atendimento presencial é feito em consonância com os estoques e outras lojas de uma rede. Ou seja, enquanto o Mercado cria estratégias de mídia, voltadas ao lucrativo mercado online, há o entendimento de que uma cultura de consumo presencial e de atendimento humanizado, ainda é visto como fundamental pela grande maioria da população. Destacamos aí os chamados Baby Boomers, que são os nascidos entre 1945 e 1964. São pessoas que vêm ao mundo exatamente no momento das grandes mudanças tecnológicas e culturais sob o ponto de vista global. É aquele vovô chato, que desconfia de facilidades e prefere um atendimento humanizado, ainda que isso desafia os avanços da humanidade, as quais prometiam trazer-lhe mais segurança e praticidade.

Devemos ainda ponderar se um círculo familiar, uma comunidade religiosa ou grupo cultural tradicional configuram “o lugar do velho” ou se esses são lugares onde tradicionalmente se valoriza o acolhimento e aprendizado através da sabedoria e da diversidade. Um grupo de jongueiros ou capoeiristas não vai realizar suas rodas e batuques apenas nos terreiros e quintais, algo que está cada vez mais escasso na Região Metropolitana, devido ao crescimento das famílias de baixa renda e sua restrita capacidade financeira de se deslocais a outros territórios além daquele onde os afetos são estabelecidos. É possível no entanto batucar em quadras cobertas, praças, inclusive transmitindo a roda e a brincadeira pelo Youtube. Porém, as cantigas e jogos de corpo continuam sendo ensinadas na própria roda, sob o canto didático dos mais velhos, o que dá sentido de pertencimento a que vive a roda, ainda que tudo isso faça parte da rede social na qual se inserem jongueiros e capoeiristas. E porque não falar das tradicionais feiras de economia criativa como a do Lavradio, a Feira Hype de Copacabana ou mesmo o Festival Café, Cachaça e Chorinho, no Vale do Café, ou ainda os incontáveis motoclubes, onde famílias inteiras têm a possibilidade de usufruir de agradáveis encontros presenciais, entre pessoas de origens e faixas de idade e renda, tão distintos? 

Se engana, no entanto, quem não percebe que as novas tecnologias e a economia da cultura não estão ali, também entre os mais velhos. Não adianta também esconder o fato que a oferta de facilidades e respostas pré-estabelecidas inibem o potencial criativo e a curiosidade dos mais jovens, criando uma grande massa de consumidores, em detrimento de uma necessária parcela de jovens criadores. É sempre bom lembrar que é desses velhos de hoje aquelas jovens mentes persistentes e criativas de 40, 50, 60 anos atrás, que fizeram com que memórias fundamentais e possibilidades criativas chegassem a essa geração, obra daqueles que experimentaram ou mesmo desenvolveram importantes avanços tecnológicos, com os quais convivemos hoje.  

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* Ivan Machado é professor de história, arte-educador, mestre em educação e presidente do Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O DIREITO A SAÚDE E A CULTURA DE CRIMINALIZAÇÃO DAS PERIFERIAS URBANAS

 

Representantes do 146X Favela: pedido formal de audiência com o Governador

No dia 21 de agosto, uma comissão de representantes do coletivo 146X Favela, ligado ao Plano Integrado de saúde nas Favelas do estado do Rio de Janeiro, protocolou documento, no qual solicita agendamento de audiência com o Governado do Estado, no sentido de convencê-lo quanto ao equívoco de contingenciar recursos financeiros empenhados pela ALERJ, para ações de saúde em áreas carentes e periféricas, em nosso estado. E não é de agora que surgem cobranças quanto ao destino desses recursos para ações de saúde em favelas. Em 01 novembro de 2023, foi protocolado pelo mandato do Deputado Estadual Flávio Serafine, ofício destinado à presidência da Fiocruz e à Secretaria deEstado de Saúde, no sentido de pedir esclarecimentos quanto ao destino dado aos 25 milhões de reais que a ALERJ direcionou a ações de enfrentamento às precárias condições de saúde nas quais vivem milhões de pessoas moradoras de comunidades fluminenses de baixa renda.  Passado mais de um semestre desde as primeiras cobranças formais junto ao estado, o que eram 54 iniciativas locais, somam hoje, com o dedicado esforço da Fiocruz, 146 ações em diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, comprometidas com a saúde integral das favelas e que, infelizmente no que diz respeito ao governo estadual, ainda não são justificativas suficientes para garantir o acesso aos recursos financeiros que têm destinação específica. Nossas ponderações são no sentido de compreender se esse modelo de gestão da saúde reflete, como parece, o princípio da “micropolítica”, onde deliberadamente o Estado exerce violência extrema e cria “mundos de morte”, onde certas populações são submetidas a condições de vida precárias e à violência constante.


Desde 2016 o governo do estado do Rio de Janeiro vem renovando, em estreita articulação com a ALERJ, uma normativa que virou lei que “reconhece o estado de calamidade pública no âmbito da administração financeira” (Lei nº 7.483/2016). É um argumento que tem servido de justificativa para corte de gastos e contingenciamento de recursos financeiros essenciais para o bom andamento de políticas públicas, em várias esferas de governança. Esse manejo de recussos público se deu, por exemplo, com a gestão da cultura, quando se tentou desviar parte do Fundo Estadual de Cultura para tapar parte do rombo nas contas púbicas, o que não ocorreu por conta da eficiente mobilização da classe artística, quando produtores, técnicos e mestres da cultura popular fluminense se organizaram e por fim, barraram a intenção do governo.

Já em 2023 o alvo tem sido os recursos destinados à saúde nas favelas e demais árias vulneráveis em nosso estado. A questão aqui tem a ver com recursos financeiros no montante de R$ 25 milhões de reais, que têm origem no Fundo Especial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, destinados a ações locais, a serem gerenciadas de forma transparente e participativa pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com base na Lei 6.412/2022 que dispõe sobre a revisão 2023 do plano plurianual 2020-2023. No entanto, desde 2020, quando a pandemia da Covid-19 provou a criação de um programa global de saúde, nos demos conta de que o cuidado com populações vulneráveis é mais que um direito social. Se considerarmos que essa infinidade de vírus que nos cerca, está a cada dia mais resistente e adaptada aos nossos tempos, temos que nos preocupar com a necessária eficiência do SUS, estrutura fundamental para a sobrevivência dos mais pobres. Conforme citamos, há o sério risco de que passemos por mais um caso de desvio de recursos financeiros por parte do estado. Agora, em relação aos 25 milhões que têm origem na ALERJ, que se destina a execução de ações de saúde integral nas favelas, com ações coordenadas por uma das mais renomadas instituições de ensino e pesquisa em saúde, que é a Fiocruz.

O estado do Rio de Janeiro gastou mais de 12 bilhões de reais em Segurança Pública entre os anos de 2022 e 2023, ao passo que o montante destinado à saúde, não chega a metade disso, no mesmo período, segundo matéria do G1, publicada no último dia 10 de julho. Ocorre que nosso estado é o que menos gasta em saúde, segundo dados do governo Federal, sendo essa uma justificativa plausível para que o Legislativo fluminense destine recursos financeiros para esse fim. Isso, sem levar em conta o aporte de recursos oriundos de emendas parlamentares impositivas, onde 226,2 milhões foram destinados ao nosso estado, sendo 30% desse valor destinados compulsoriamente à saúde, nos levando ao entendimento que o contingenciamento de recursos financeiros voltados às favelas configura mais um caso de discriminação ou mesmo o típico racismo ambiental, se considerarmos em quais ações policiais são aplicados parte desses bilhões da segurança pública, em comparação às iniciativas governamentais de saúde nas favelas.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

FOLIA SETE ESTRELAS, O MATRIARCADO RETORNA A SUA JORNADA

 

Lacy e o núcleo familiar da Folia Sete estrelas do Rosário de Maria


Por Ivan Machado*

Lacy, mais conhecida como Lazinha, tem 57 anos e é a nova mestra da tradicional @folia_de_reis_sete_estrela.7 sediada em Mesquita, na Baixada Fluminense. 

Filha de Dona Maria Ana, matriarca da Folia Sete Estrelas do Rosário de Maria. Desde criança acompanho todas as fases da jornada de nossa bandeira, desde a costura das fardas, ensaios e preparação da alimentação dos convidados das nossas festas de arremate. Com o falecimento de nossa mãe em outubro de 2010, meu irmão Sidnei assumiu a folia, com muita dificuldade, por conta de seu trabalho que o fazia viajar de caminhão e ficar muito tempo fora de casa.  Nesse ano de 2024, após longas conversas sobre o risco de nossa folia parar suas atividades, resolvi assumir definitivamente a bandeira com minha filha Elizangela, que vai ocupar minha função de contramestre.

 Principais informações sobre a folia Sete Estrelas do Rosário de Maria

Ano de fundação da Folia: 1867
Número de componentes: 38
Endereço da sede da Folia: Rua Otacílio Tavares, 86 - Chatuba, Mesquita-RJ

 

Lacy com sua mãe, D. Mariana

É a partir relatos de Dona Mariana do município que se tem informações sobre a primeira saída da “Sete Estrelas”, em Monte Verde, distrito de Camanducaia, município de pouco mais de quatro mil habitantes, em Minas Gerais. Segundo ela, Seu avô Domingos Ramos deu início à jornada que, por sua vez, passou a bandeira para seu filho Antonio Jacinto que, por conseguinte, também passa a seu primogênito Antonio Jacinto Filho. Pelo fato de seu filho ser menor de idade e suas condições precárias de saúde, Jacinto Filho passa a bandeira para sua irmã Maria Ana. Após passar por municípios fluminenses como Itaperuna, Cambucí, Dona Mariana vem pra Baixada Fluminense, primeiro em Duque de Caxias e por fim, se instala no bairro da Chatuba em Mesquita, onde criou seus filhos e onde nasceram seus netos e bisnetos, todos envolvidos diretamente com a folia de Reis.

 O desafiador protagonismo feminino nas culturas populares

As mulheres sofrem constantemente com o machismo arraigada em muitas de nossas tradições populares. Ainda que seja a mulher quem sustenta com sua sabedoria e práticas a base de nossa cultura popular. É inegável que a sociedade urbana e capitalista mantenha suas estruturas, onde que é o homem branco hetero quem impõe seu modo de vida, sobretudo por ser esse o perfil de quem domina os meios de produção e acumula riqueza.

Mesmo entre grupos populares e tradicionais, muitas vezes espera-se que as mulheres assumam papéis tradicionais, como cuidar da família, da comida ou mesmo educar crianças, o que pode limitar suas oportunidades de liderança e participação em atividades culturais. Sabemos que mulheres de diferentes raças, etnias e classes sociais enfrentam desafios adicionais. No entanto, mulheres negras e periféricas podem enfrentar tanto racismo quanto sexismo de forma amplificada, o que complica ainda mais sua posição em grupos culturais. A violência, tanto física quanto psicológica, é  outro obstáculo significativo. Mulheres em posições de liderança podem ser alvo de assédio e violência, o que pode desencorajá-las a continuar em suas funções. A sub-representação de mulheres em posições de poder e decisão em grupos culturais pode perpetuar a desigualdade e limitar a diversidade de perspectivas e experiências.

Reafirmar a capacidade intelectual das mulheres é papel fundamental do homem que se diz comprometido com uma sociedade mais justa, exatamente porque a injustiça é algo comum entre grupos que não disputam a chamada economia da cultura, que se estabelece inclusive como modelo de gestão, o que relega a segundo plano as manifestações populares que surgem da base da sociedade, sobretudo no que se refere à camada menos favorecida economicamente. Assim, fortalecer a imagem da mulher líder em grupos de cultura popular e tradicional com as foias de reis, torna-se uma missão, considerando que novas gerações de líderes surgem naturalmente também nesses grupos. O lugar que Lacy ocupa hoje é então um espaço não apenas de liderança mas também didático e educativo por natureza.

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*Ivan Machado é historiador, produtor artístico e presidente do Centro de cultura Popular da Baixada Fluminense

quinta-feira, 23 de maio de 2024

PROJETO CHM SEM BACILO - RELATOS DE UMA ETAPA


Capa do caderno informativo do projeto CHM Sem Bacilo


A partir da pandemia da Covid-19, optamos por ampliar nossas ações institucionais, considerando o grau de exposição a condições de risco, por parte dos grupos com os quais interagimos. Assim, firmamos parceria com a Fiocruz através de edital público, de modo a conhecer, enfrentar e apontar caminhos para a saúde integral da população residente na Chatuba de Mesquita, que circunda os coletivos culturais com os quais temos proximidade e acompanhamos, desde 2009.

Tivemos nove meses de atividades, com ações diversas de educação em saúde. Foram distribuídos alimentos agroecológicos, oriundos da agricultura familiar local, entre os meses de outubro de 2023 e abril de 2024. A importante parceria com a cooperativa de produtores da região, possibilitou que o projeto atuasse também fortalecendo e divulgando os produtores locais. As cestas foram distribuídas no último sábado de cada mês, sempre com exibição de filmes e documentários sobre tuberculose e outras doenças, seguido de roda de conversa. A equipe do projeto se fez presente em todas as ações locais demandadas pelas fortes chuvas do início de 2024, cooperando para minimizar os impactos dos eventos climáticos na região.

A coordenação do projeto participou de formações, reuniões, sobre tuberculose junto ao CEDAPS, ao Fórum de Tuberculose do Rio de janeiro, e cursos online em plataformas do SUS e da FIOCRUZ, para melhor atender aos pacientes de tuberculose beneficiados pelo projeto. As reuniões de equipe do projeto aconteceram todas as segundas-feiras dos meses de vigência do mesmo, avaliando, monitorando, elaborando estratégias de ação, cronogramas, selecionando material de trabalho e aprimorando a atuação.

Segue aqui link do caderno informativo doprojeto CHM sem Bacilo, que resume nosso relatório de ações locais. É uma iniciativa que visa ampliar a visão tanto da população local, quanto de parceiros, quanto a realidade de quem vive na Chatuba de mesquita, no tocante a saúde e segurança alimentar.

 


sexta-feira, 29 de março de 2024

A Lei dos Mestres e os desafios da Cultura Popular e Tradicional no Estado do Rio de Janeiro



Festa de Arremate da Folia de Reis Sempre Viva do Oriente-Mestre Claudio
Texdo de: 
Ivan Machado 
Mestre Paulão Kikongo
 e Thereza Dantas

 Em nossos dias, quando se pensa na salvaguarda de expressões culturais que nos identificam enquanto povo brasileiro e em um país de dimensões continentais como o nosso, há que se pensar também no longo caminho trilhado por indivíduos e entidades que, ao longo do tempo, vem buscando humanizar aquilo que anteriormente chamávamos de folclore. Uma prioridade nesse contexto de humanização do olhar sobre expressões de nossas tradições populares, é evitar o descolamento entre ensinamentos, técnicas, crenças, expressões estéticas e as pessoas que detém tais conhecimentos. Com isso se justifica um levantamento inicial, realizado pelo Centro de Cultura Popular da Baixada fluminense, em parceria com a Rede das Cultura populares e Tradicionais e o Fórum das Culturas Populares e Tradicionais, que dá conta de levantar uma prévia de quantos são, onde estão e há quanto tempo atuam mestras e mestres de nossa popular e tradicional fluminense. Nesse levantamento, esses coletivos tomam como referência marcos legais que tramitam no Legislativo, tanto na esfera estadual quanto federal.



Mestras e Mestres do Rio de Janeiro

Na cidade maravilhosa, o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e Mestras do Patrimônio Cultural Imaterial das culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, caiçaras e de outras comunidades e grupos tradicionais, o Projeto de Lei Nº 1829/2023, proposto pelo vereador Edson Santos (PT), o mesmo político responsável pelo PL das Mestras e Mestres das Culturas Populares no Congresso Nacional, e as vereadoras do PSOL Mônica Benício, Mônica Cunha e Luciana Boiteux, foi vetado na íntegra pelo atual prefeito Eduardo Paes, o mesmo que frequenta as rodas de samba com alegria e amplamente divulgado nas redes sociais da Prefeitura do Rio de Janeiro.

 

Link do PL

 Há falta de entendimento da importância desses mestres e mestras na vida dos brasileiros, vetar integralmente o PL para Mestres e Mestras da cidade do Rio de Janeiro demonstra um desrespeito para com quem faz as Rodas de Samba, os Jongos, as Folias de Reis, as Rodas de Capoeira, a Moda e as Festas das Culturas Populares e Tradicionais.

 Na resposta ao PL Nº 1829/2023 que instituía o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e do Patrimônio Cultural Imaterial das culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, caiçaras e de outras comunidades e grupos tradicionais publicada em DO 29 de Novembro de 2023, a justificativa de que essa “é uma atribuição do Prefeito”, no caso o sr. Eduardo Paes, que frequenta rodas de samba e diz amar o Carnaval, essa festa tão popular!

 

A Lei dos Mestres e um levantamento que a justifique -Link do Veto

Conforme foi dito de início, uma parceria firmada entre o CCPBF e os dois fóruns que acompanham os marcos legais referentes às culturas populares, está dialogando com alguns mestre e mestras, no sentido de ponderar junto a esse, a relevância de uma lei que os contemple. No levantamento feito entre os dias 10 e 22 de março, tiveram retorno de 37 mestres de folias de Reis, 13 mestres de capoeira, 03 mestras cirandeiras, 03 erveiras, um mestre griot e um brincante de Caxambu, todos e todas com idade acima de 50 anos e com mais de 20 anos de prática em seus respectivos segmentos. Esse levantamento seguiu os critérios básicos das três propostas legais citadas, deixando claro o interesse desse segmento na efetiva execução da Lei dos Mestres de Cultura Popular no âmbito do estado do Rio de Janeiro.

 Desde 2020, quando a pandemia da Covid-19 colocou em risco milhões de idosos no Brasil, além de ceifar a vida de milhares nessa faixa etária, percebemos o quão frágil é a condição de vida de mestres e mestras que, quase em sua totalidade, vivem em condições precárias de subsistência. Muitos entre esses têm limitado acesso a informações que lhes garantam qualidade de vida, bem como ao que se refere a inclusão digital desses, o que impacta significativamente no acesso dos mesmos a editais públicos. Estamos cientes que ideia de Economia da Cultura é uma realidade que eleva o potencial de geração de renda no PIB nacional, ampliando a relevância do setor cultura, agregando relevância aos milhares de agentes culturais. No entanto, as culturas populares e tradicionais, sobretudo aquelas que se manifestam nas comunidades menos abastadas, não disputam a economia da cultura, o que leva produtores e demais profissionais do entretenimento a não priorizarem esse segmento em suas práticas profissionais, no que se refere a captação de recurso que garantam subsistência a mestres e mestras. Em muitos casos, sobretudo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, há dificuldades inclusive quanto a viabilidade de deslocamento de grupos que se expressam através de cortejos, como é o caso de bate-boleiros e foliões de Reis. Em relação a esses últimos, temos ainda a questão da violência urbana e a baixa sensação de segurança pública, impedindo que, em muitos casos, a devoção aos Reis chegue às casas dos devotos que, por sua vez, sempre foram importante fonte de renda, a partir das “ofertas” entregues aos mestres, em gratidão pelas visitas e rezas.

 Estado que tem muitas Culturas

O Estado do Rio de Janeiro tem uma variedade de comunidades tradicionais e povos originários que surpreende quem quer conhecer para além do Carnaval. São Folias de Reis e do Divino, são Serestas, grupos de Mineiro Pau, Jongos, Rodas de Capoeira, corais Guaranis e Cirandas caiçaras preservados pelas mestras e mestres espalhados em cidades históricas centenárias como Valença, Paraty, Angra dos Reis, Vassouras, Barra do Piraí, Conservatória, Rio das Flores e Petrópolis.

 Atenta a essa diversidade cultural, a jovem deputada do PSOL, Dani Monteiro, conseguiu redigir, com o apoio de vários mestres, o projeto de lei de Salvaguarda de Mestres e Mestras da Cultura, o PL 1321-A/2023, e que, segundo a assessoria da deputada, contou com a atenção da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro, SECEC RJ.

 O PL 1321-A/2023 visava “garantir a aposentadoria de mestres e mestras que dedicaram suas vidas à cultura popular no estado do Rio de Janeiro” foi aprovado em meados de Dezembro na ALERJ e sancionado pelo atual governador do Estado do Rio de Janeiro. Apenas dois incisos, II e III do Art. 9, foram vetados:

“II - receber bolsa mensal, mediante recursos incentivados, no valor equivalente a:

a) no mínimo, 02 (dois) salários-mínimos nacionais para pessoas físicas; e

b) no mínimo, 03 (três) salários-mínimos nacionais para grupos;

 III - ter prioridade na análise de projetos culturais apresentados à Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, à Secretaria de Estado de Educação, à Secretaria de Estado de Esportes e Lazer, assim como a outros órgãos ou entidades integrantes da administração pública estadual.”  Justamente os que tratavam da questão econômica receberam tanta atenção que foram vetadas!

 A deputada Dani Monteiro pretende criar uma campanha popular em 2024 para derrubar os vetos do governador que gastou “apenas” 3 milhões de reais para decorar o camarote na Marquês de Sapucaí, no Carnaval de 2024. 

 Mestras e Mestres do Brasil

A ideia de Lei dos Mestres e Mestras da Cultura Popular e Tradicional não é uma novidade como política pública no Brasil.

 A Lei Estadual nº 12.196, de 02 de maio de 2002, instituiu a concessão do título de Patrimônio Vivo do Estado Pernambuco (RPV-PE), que prevê o pagamento de uma pensão vitalícia para os mestres e ou grupos culturais, selecionados por meio de edital público, e são lançados anualmente desde então.


A Política dos Mestres da Cultura do Ceará, Lei 13.351/2003, completou 20 anos de existência em 2023. Em 2006 foi criada a Lei dos Tesouros Vivos, uma importante política que reconhece as pessoas naturais, os grupos e as coletividades dotados de conhecimentos e técnicas de ações culturais cuja preservação e transmissão são reconhecidas e representativas da Cultura Cearense.

 No Nordeste, a visibilidade e o respeito com os mestres e mestras é presente nos estados de Sergipe, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia e Maranhão. Na região Sudeste, apesar da riqueza cultural, gestores públicos ainda não se convenceram da importância dos mestres e mestras dos Congados, Moçambiques, das Folias de Reis e do Divino, da Catira, do Samba de Bumbo Paulista, e do Samba carioca.

 Por fim, quando tomamos conhecimento da implementação Da Política Nacional Aldir Blanc-PNAB, entendemos que essa seria uma oportunidade ímpar de garantir amparo financeiro a mestras e mestres de cultura popular e tradicional, ao menos nos cinco anos de vigência dessa política. Nosso entendimento é que os erros do presente têm muito a ver com a precária compreensão de nosso passado, o que fatalmente comprometerá nossas identidades culturais, no futuro.